DESCONHECIDOS – 79
Rangel Alves da Costa*
Num desespero indescritível, temendo que o coronel tomasse contato antes do tempo com Soniele, a jornalista quase atropela o senhor para tomar sua frente quando entraram na pequena sala. Olhou para um lado e para o outro enxergou somente um verdadeiro pacote de pessoa, toda embrulhada na esteira.
“É uma pessoa que está aí assim desse jeito? Acorde sob pena de morrer sufocada. Onde estão os outros?”, indagou o coronel, passando os olhos investigativos por todos os cantos e recantos. “Estou aqui senhor, seja bem vindo. O que deseja?”. Era Carol, para alegria da jornalista, agora mais aliviada, porém ainda temendo que de uma hora pra outra a mocinha tirasse a coberta do rosto e botasse tudo a perder.
Outra triste lembrança balançou novamente Cristina, que rapidamente se dirigiu para frente da banquinha onde certamente estaria o retrato de Gegeu. Lembrou que o retrato estava ali e se o coronel o encontrasse começaria o mal-estar, viriam as perguntas e talvez nada do que justificassem desse certo. Por isso mesmo correu para esconder o retrato.
Contudo, antes que pudesse se posicionar frente ao local, o coronel avançou um pouco mais e pediu que afastasse um pouco porque gostaria de ver uma fotografia que tinha avistado ali na banquinha. Neste momento Cristina tremeu dos pés à cabeça, colocou uma das mãos na parede para não cair.
O coronel se encaminhou até a banquinha e segurou o porta-retrato na mão e depois perguntou quem era aquela velha senhora na fotografia. Ao ouvir tal pergunta todo mundo ficou pasmado, espantado diante desse fato novo. Uma velha senhora? Cristina e Soniele sabiam muito bem de quem era aquele retrato; Carol conhecia como irmão da amiga, ao menos foi isso que ela lhe contou.
“Qual senhora, coronel?”, perguntou Cristina, com os olhos ainda arregalados. “Esta aqui que está na fotografia. Veja”. E mostrou o objeto contendo realmente uma fotografia muito envelhecida de uma velha senhora. Então Cristina ficou verdadeiramente sem saber mais o que fazer, pois tinha certeza de outra coisa, já confirmada no dia anterior. E tinha certeza também que Soniele não havia mudado nada por ali.
“Uma velha senhora, uma velha senhora, deixe-me ver”. Quase a jornalista não consegue falar, mas conseguiu perguntar a Carol em seguida, numa estratégia para disfarçar: “Você conhece essa senhora da fotografia Carol?”. “Não, pois aí não pode estar nenhuma velha senhora nem outra pessoa. Quem está aí nesse porta-retrato é o irmão de Soniele...”.
Ao ouvir esse nome o coronel enrubesceu: “Soniele, Soniele, você disse mesmo esse nome. Quem é essa Soniele, onde está essa Soniele?”. Cristina emudeceu de vez, de tão pálida e nervosa que estava se jogou num banquinho para o que desse e viesse.
Estava sufocada, alarmada, amedrontada, tudo. E tudo porque não sabia qual seria a reação do coronel se ouvisse agora alguma coisa que pudesse identificar essa Soniele como a outra Soniele. Era a mesma pessoa, mas por enquanto deveria deixar de ser, ao menos até que se pensasse em algo menos doloroso e arriscado.
De cabeça baixa, pingando suor, começou a ouvir Carol falar aquilo que realmente conhecia. “Moço, a Soniele é uma amiga minha que está aí toda enrolada meio adoentada. Se o senhor conhece outra Soniele tenho certeza que não é essa não, pois essa daí se trata de uma mocinha pobre, nascida numa família humilde e que só está aqui pra ver se uma tia sua retorna. Quando ela chegou aqui pra encontrar a tia, a mulher tinha viajado, por isso mesmo é que ficou nesse barraco esperando”.
“Ah, ainda bem, ainda bem, pois de repente pensei se tratar da outra Soniele, também uma mocinha muito bonita, porém desajuizada que preferiu pior caminho quando poderia ter o melhor e o que quisesse. Mas um dia eu irei encontrar a outra Soniele, disso podem certeza. E quando esse dia chegar...”.
Agora mais aliviada, a jornalista levantou e perguntou o que aconteceria no dia que encontrasse Soniele. Então o coronel tirou o chapeu, passou a mão pelos cabelos brancos e depois falou olhando pra cima: “Quando chegar o dia que eu a encontrar farei uma pergunta que vive martelando em minha cabeça, só isso. E não hei de morrer sem ouvir essa resposta”.
“Desculpe coronel, mas é alguma coisa relacionada ao seu filho, que gostava tanto dela?”, perguntou Cristina. “É também sobre ele, sobre minha pessoa, sobre muitas pessoas. Mas basta uma pergunta e uma resposta e tudo estará resolvido”.
Carol trouxe um café quentinho que foi muito bem aceito pelos dois. A tempestade já passou, ao menos por enquanto, dizia a jornalista a si mesma. Contudo, ainda não entendia como o retrato de Gegeu havia se transformado naquela fotografia. Aquela velha senhora simplesmente não existia. Alguma coisa, alguma força superior ou encantamento havia possibilitado aquela transformação.
Após sorver gulosamente o café e fazer o convite para as inaugurações, o coronel se voltou para a esteira onde estava Soniele e disse que ainda hoje, mesmo que fosse à noitinha, chegaria um médico ali para cuidar da doente.
Antes de saírem, a jornalista chamou Carol até os fundos do barraco para dizer que depois voltaria para conversarem melhor. Pediu ainda que não falasse nada a Soniele sobre o ocorrido, acaso ele não tivesse ouvido. Mas enquanto falava percebeu nitidamente o vulto de um rapaz passando rapidamente de um vão para outro. E não tinha dúvidas que era o falecido Gegeu. Estremeceu, sufocou um grito, se conteve a todo custo e não disse nada.
Ao seguir quase correndo para a saída do barraco, onde já lhe esperava o coronel, olhou rapidamente para o porta-retrato e lá estava novamente a outra fotografia, lá estava Gegeu. E se apressou mais ainda, quase se batendo nas palhas que formavam divisórias. Estava atônita, era coisa demais para um só dia.
Enfim gritaram que já estavam indo, para contentamento de Soniele que não suportava mais tanto sufocamento, tanta aflição, tanta dor e sofrimento em cada palavra que ouvia. E ao ter certeza que já haviam saído mesmo, a primeira coisa que fez foi afastar aqueles panos e olhar para os lados da fotografia, que estava sorrindo. Gegeu estava sorrindo.
E eis que andando pela beira da praia, fumando um charuto e acenando de um lado para o outro, o coronel interrompeu o assunto do qual vinha tratando para perguntar quem era aquela figura esquisita que vinha falando sozinho mais adiante. E Cristina respondeu que era um maluco que havia aparecido e se fixado na vila, segundo informaram.
E ao chegar perto dos dois, o profeta Aristeu cumprimentou o coronel e disse, em voz clara e firme: “Mas veja se não é o dono do mundo, o coronel faz o que quer, o manda e desmanda em tudo? O mesmo coronel que um dia emprenhou Custódia e tapou a boca do pai dela com dinheiro. Lembra de Custódia coronel? Se nasceu uma menina deve ter saído bonita como a mãe. Não é coronel?”. E seguiu adiante, sem olhar pra trás.
O coronel baixou a cabeça e se Cristina não lhe segura teria desabado no chão.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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