*Rangel Alves da Costa
Manuel Bandeira, em poema de expressividade
cruenta, havia suposto a existência de um estranho animal sobre os lixões. “Vi
ontem um bicho na imundície do pátio, catando comida entre os detritos. Quando
achava alguma coisa, não examinava nem cheirava: engolia com voracidade. O
bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato. O bicho, meu Deus, era
um homem”. Eis o retrato de “O bicho”, tão verdadeiro como voraz, e ainda
avistável pelos lixões e por todos os lugares.
“O bicho, meu Deus, era um homem”. Que
testemunho tão indigno aos olhos de um ser humano. Mas que presença tão
constante e costumeira aos olhos do ser humano. E quantos bichos haverão de
estar agora pelos mesmos lixões, pelas ruas insensatas e desumanas, pelas
marquises solitárias e perigosas, pelos becos carcomidos de vícios, pelas
vielas sangrentas e amedrontadas, pelos barracos disformes e nus. Por entre
esquinas e labirintos vive a realidade social mais contundente e mais negada.
Todo mundo vê bicho, todo mundo sente a presença do bicho. Mas é bicho, e então
se afasta. Mesmo sabendo que não é bicho, mas tão humano quanto o espelho de si
mesmo.
Uma selva humana em meio aos homens de bem,
assim se imagina. Uns dizem se tratar de feras perigosas. Outros dizem que
vivem sempre prontos para o ataque, e por isso mesmo é melhor fugir de suas
presenças. Já outros, simplesmente ignoram os uivos, os berros, as ruminações,
os olhos famintos e as mãos estendidas. E dizem ainda: nem todos são iguais, e
por isso tais diferenças que não nos cabe resolver. E seguem adiante, com olhos
atentos, amedrontados, temendo sempre serem alcançados por uma diminuta
ferocidade: um menino magro e quase nu que pede esmola. Que tempos, que mundo!
Eu também todos os dias vejo bichos na
imundície do pátio, catando comida entre os detritos. Meu olhar não pode fugir
aos bichos que se estendem adormecidos por cima de bancos de praças, debaixo de
marquises, em meio às calçadas, num canto qualquer. E creio que todo aquele que
não finja enxergar, certamente também avista a selva humana que está pelos
becos, pelas ruas, pelos escondidos da cidade. E também dentro daquilo que se
tem como lar. Barracos caindo, moradias de papelão e madeira, quatro paredes
frágeis com uma tosca cobertura por cima. E a fome grassando, a carência doendo
dentro de cada um, a ausência de prato, a inexistência de comida.
Não há como negar que realidades assim estão
por todos os lugares, nas grandes e pequenas cidades. A noção de bicho está
exatamente no espanto causado ante o avistamento dessa realidade. Tem-se que
não é da normalidade humana viver catando restos e detritos para se alimentar.
Tem-se que foge ao comum entendimento que seres humanos ainda se submetam a
restos putrefatos das bolsas de lixo colocados em calçadas. Muitos ainda
imaginam que mesmo tendo pouco no seu dia a dia, as pessoas não digerem as
podridões que encontram pelas ruas.
Tudo uma questão de sobrevivência. Verdade
que o bicho do mato se alimenta bem melhor que o homem. As aves carnicentas se
alimentam de restos podres por disposição digestiva. Predadores se alimentam de
outros animais por que necessitam sobreviver. Em épocas de seca ou de falta de
alimentos, sempre reinventam seus alimentos. Contudo, negam aquilo que não desejam,
ainda que estejam famintos. Mas com o homem não acontece assim. O homem não tem
a palma pinicada em cesto no lugar da pastagem verdejante. O homem não tem o
caroço mastigável quando lhe falta o broto. Com o homem é diferente. Ou tem ou
não tem.
Qual a escolha a ser feita quando não há mais
comida? O que se deve fazer quanto não resta mais tostão nem vintém para
comprar tiquinho disso ou daquilo? Qual atitude tomar perante o choro dos
filhos e o passar das horas sem qualquer esperança de alimento? Situações
dilacerantes para um ser humano suportar. Por perto e pelas distâncias, quantos
fogões sem panela, quantas panelas sem alimento, quantos pratos vazios, quantos
pais desesperados ante o pedido dos filhos? O que fazer, então? Mendigar,
pedir, implorar, catar, animalizar-se. E logo perante uma sociedade que teme o
bicho.
Mas não só pela falta de alimento padece a
pobreza ou a indigência. A selva social vive repleta de bichos cheios de dores.
A penúria é imensa e dolorosa, mas outras angústias também tomam conta desse
perverso tempo. Os miseráveis das drogas e outros vícios, os que tiveram as
portas fechadas e passaram a ter o desalento como lar, os que padecem como
inúteis e discriminados nos corredores dos hospitais, os que desacreditaram na
vida e vivem no pêndulo da mesma vida. E quanto abandono de pais pelos filhos.
E quanto dói sentir a sociedade cada vez mais desumanizada pelos egoísmos e
acumulações materiais. E para nada.
Agora mesmo eu vi um bicho. Ora, quanta
insensibilidade no meu olhar e quanta frieza na minha atitude. Pediu e dei-lhe
um copo d’água. Com o cuidado para que minha mão tão limpa não se aproximasse
muito da dele. Ele poderia morder.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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