SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 19 de novembro de 2015

O DIÁRIO DO MORTO


Rangel Alves da Costa*


Velado pelo silêncio e pela solidão, Pascácio jazia morto num caixão de pouco valor. Num misto de tábua e rebotalho de madeira frágil, o esquife ali estendido mais parecia um barco de flores de devotos empobrecidos e que serve para ser lançado nas águas em homenagem à Rainha Grande, remendado e pregado àquela serventia. Triste que se assim acontecesse.
A pobreza, além de dificultar a vida, degrada também a morte, certamente observaria o vigário acaso tivesse aparecido para uma encomendação de alma qualquer. Já o escrivão Toniquinho certamente diria, naquele floreio de poeta rejeitado, que a sina do homem se perfaz na solidão, tanto na morte como na vida. E caso tivesse passado por ali constataria toda a dimensão de um abandono na hora mais triste.
Mas não apareceu. Ninguém apareceu depois que o homem foi colocado naquela caixa rasa e ali deixado estendido, vestido numa roupa qualquer e ladeado por quatro ou cinco flores de plástico envelhecidas. Porta e janela abertas, uma vela apagada pela força da ventania, um Deus entristecido de braços abertos na parede e nada mais que isso. Nada mais que o desalento e o silêncio dos sinos. Sequer o sino havia dobrado anunciando aquela partida.
Costuma-se, em situações assim, que parentes, amigos e vizinhos – e até desconhecidos -, acorram para a lamentação. Todo morto precisa ser lamentado, chorado, cantado seus valores em vida e reconhecido até mesmo pelo que jamais se prestou a ser. E também costumeiras são as velas cercando o caixão, as flores surgidas de qualquer jardim, as preces, as ladainhas e encomendações de alma. E igualmente o entristecimento, o luto ao menos naquele instante, o abatimento no olhar. Ainda que tudo por fingimento.
Mas ali, mesmo no meio clarão/sombreado do dia, nenhuma alma viva chegava para prantear a alma morta. Apenas o zunido do vento, o abrir e fechar da janela, as folhagens secas que iam se acumulando pelos cantos. Tempo de ventania, com feição de trovoada, mas nenhum sinal de pingo d’água querer cair. Apenas aquela face pesada, fechada, sombria, entristecendo mais ainda o ambiente e os arredores. Uma ave agourenta piando em pleno dia. Coisa estranha de acontecer. Na falta de choro, de lamento e de ladainha de encomendação, apenas aquele pio medonho se fazendo ouvir.
A ventania aumentava e balançava tudo. A porta de trás e da frente totalmente abertas, davam passagem aos zunidos vorazes. E o defunto ali sem poder mais fazer o que outra fazia em situações assim: bastava a aparência de trovoada com relâmpago e trovão e logo fechava tudo que pudesse permitir o alcance de raio. E depois, de rosário entre os dedos, invocava aos santos proteção contra tempestade, mas também chuva farta para molhar a terra e encher tanques e barragens. Ele mesmo não possuía sequer um quintal com cisterna, mas o bom coração relembrava a necessidade dos outros.
Mas não seria naquele dia a chuva de trovoada. A ventania continuou uivando e cada vez mais afoita, mas apenas para fazer cair – e não se sabe como nem de onde – um velho diário bem em cima do morto. Caiu como num arremesso, desceu como num pouso. E ao descer rente às mãos enlaçadas do defunto, logo se abriu pela ventania. E ali escrito na página aberta, com letra antiga de aluno aplicado, as sentenças na vida vivida:
“A verdade dos tempos, uma dor que ainda dói. Eu não contava em poucos números o tanto que tive. Um monte disso e daquilo, e mais e muito mais. Com o passar dos anos, apenas os dedos das mãos e já dava para contar o que me restava. Hoje sei de tudo que possuo pelo pensamento. Difícil acreditar, mas não consigo pensar em nada. Nada mais tenho”.
E a ventania, como num ato premeditado, ia repassando as páginas, onde se avistava:
“No ouro ou no barro, nunca mudei o meu jeito de ser. Semeei amigos, colhi boas amizades. Mas tudo noutros tempos, naqueles tempos onde tudo era fartura. Hoje está até difícil um bom dia ou boa tarde. Mas sei que não mudei, mas também sei o que mudou nas pessoas. O ter e o não ter constroem edifícios e joga ao chão, ao reles do esquecimento. É o ter ou não ter que faz com que a pessoa seja percebida ou não. No meu caso, tornei-me um desconhecido a todo mundo. Aqueles que eram amigos ainda passam por aí. Mas cadê os amigos?”.
E assim a ventania foi cuidando de passar página por página do velho diário. E na última folha estava escrito: Romanos, 7,24: Miserável homem que eu sou! Quem me livrará do corpo desta morte?
As nuvens de chuva escondiam o sol. Tudo sombrio e entristecido. Mas a chuvarada não veio, nenhum pingo caiu. E também nenhuma lágrima, nenhuma tristeza no olhar, nada que honrosamente desse adeus à morte. As folhas levadas na ventania continuam velando a solidão. Dessa tamanha solidão que é a morte.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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