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quinta-feira, 5 de novembro de 2015

OS RIOS PASSAM PELAS ALDEIAS


Rangel Alves da Costa*


Os rios passam pelas aldeias. Os rios de águas correntes, os rios poéticos, os rios simbologias, os rios mitológicos, os rios imaginários, todos passam pelas aldeias. Há um leito que surge distante e vai se aproximando para fazer das margens um cais de chegada e partida, um porto de sonhos e esperanças.
Na aldeia de Fernando Pessoa passa o mais belo dos rios: “Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia... Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia. E para onde ele vai e donde ele vem. E por isso porque pertence a menos gente, é mais livre e maior o rio da minha aldeia...”.
As aldeias parecem brotadas das águas e não das ribeiras que margeiam os rios. As aldeias parecem navegar nas águas mansas e não no redemoinho da vida real. As aldeias parecem ter saído das águas e simplesmente repousado nas areias tantas que estão ali e mais adiante. As aldeias parecem as saudades que permanecem depois que as águas passam e vão levando o tempo. Por isso que os rios passam pelas aldeias.
Os rios passam pelas aldeias porque necessitam abraçar sua geração. Ali, nos casebres, nas choupanas, nas casinholas de pescadores, por cima dos barcos e no emaranhado das redes, na ponta dos anzóis e nas areias ao redor, tudo filho das águas. Daí serem os rios os pais e mães de tudo que se chama ribeira, margem, pescador, barqueiro, vivente daquelas distâncias molhadas e de tão sublime sobrevivência.
Os rios passam pelas aldeias porque vai ao encontro de sua própria existência. Não há rio sem aldeia e nem aldeia de pescador sem um rio que passe adiante e permita a sobrevivência, a partida e a chegada. O homem é filho das águas e as águas estão dentro do homem, como uma moringa de barro que bebe da própria água para não se alquebrar no mormaço. Assim com o rio e com o homem. Nem um nem outro se distância. Os dois vivem nas entranhas um do outro sem que se possa apartar.
De um velho pescador já se ouviu que as aldeias são santuários cultuando as águas dos rios. De outro ribeirinho já se ouviu que as águas que vão passando vai levando uma saudade sem fim de cada beirada de areia que vai ficando atrás. E assim porque sabem que aqueles que ficam nas aldeias sempre choram ante a sua passagem. Não de tristeza ou dor, mas de contentamento infinito pela sua existência.
As águas vão mansamente passando enquanto as aldeias mansamente vivem o destino dos rios. Há no silêncio e na calma, na paz e no sossego, no bucolismo e na feição antiga, a mesma feição das águas que parecem sempre as mesmas, e sempre mansas, vagarosas, singelas, num percurso que é o mesmo desde os primeiros tempos. E um mistério de amor que torna inseparáveis aquele caminho molhado do caminho do homem ribeirinho.
E um amor demonstrado em tudo. Enquanto as águas sempre se aproximam dos seus para carinhosamente beijar, os ribeirinhos tornam a sua presença motivo maior para tudo na vida. Caminham pelas areias, lentamente se aproximam e depois mergulham para o abraço. Sentam-se defronte aos casebres e miram apaixonadamente aquele corpo belo que vai seguindo adiante olhando pra trás. E ao alvorecer e entardecer, quando as águas são como espelhos de luz, então se reconhecem como amantes e filhos de toda aquela beleza.
Sim, a razão com Fernando Pessoa. Mas também como todo ribeirinho e todo pescador, com todo vivente das beiradas dos rios. O rio do poeta é mais bonito que o Tejo porque é o rio que passa pela sua aldeia. Assim a beleza maior de todos os rios que passam pelas aldeias. Não precisa ser imenso e caudaloso, apenas um rio, não precisa ser caminho de grandes embarcações, mas apenas um singelo e humilde rio. Eis que o amor está no que os olhos avistam da aldeia, e não naquilo que se supõe existir.
Assim os rios passam pelas aldeias. Assim os aldeões ribeirinhos vivem a vida dos seus rios. Por que nestes não apenas leitos de águas correntes, mas a vida no espelho d’água.
                                                                                                      

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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