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quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Preces, flores e velas (e lágrimas por todas as vítimas do mundo)


Rangel Alves da Costa*


Os últimos e estarrecedores acontecimentos, principalmente o rompimento da barragem no município mineiro de Mariana e a descida de um rio de lama sobre casas, pessoas e tudo que houvesse ao redor, bem como a sequência de ataques terroristas na capital francesa, tornando a noite parisiense num cenário de selvageria, de sangue e mortes, demonstram a fragilidade da vida ante as ameaças ocultas. E mais ainda: confirmam que todas as grandes conquistas das civilizações se ajoelham e se submetem à perversão de alguns ditos civilizados.
Quando se imaginava haver o homem novo, talhado pelos novos princípios e carregando na sua alma o humanismo e a compreensão, vencido a barbárie, eis que ressurge para mostrar a prevalência de seus instintos mais cruéis e sanguinários. Quando se imaginava haver o mundo moderno se distanciado daquelas hordas assassinas e daquelas levas de fogo e sangue, eis que novamente a sociedade é tomada pelo medo, pela dor e pela desesperança. Quando se imaginava haver expurgado os tempos de trevas, eis que o caos e a bestial cegueira apagam todas as luzes da paz social.
Quando se pensava haver o homem aprendido a respeitar o próximo, a lhe garantir o mínimo de segurança no seu cotidiano de vida e fazer das transformações algo benéfico a todos, eis que a voracidade capitalista torna em vítima qualquer um que esteja ao redor. Quando se pensava que as tecnologias, os métodos de segurança e as modernas normas de proteção seriam suficientes para permitir o progresso sem a vitimização do ser, eis que surge a constatação de que o homem ainda não aprendeu a avistar o outro que está adiante e tanto faz que pereça por erros, negligências e omissões.
Quando se pensava muito – e muito diferente – sobre o mundo e sobre o homem, eis que a ignorância sobre tudo surge como resultado final. E a sociedade, tão duramente formatada, e a vida, tão asperamente evoluída, agora se afeiçoam a um nada. Tudo feito, tudo conseguido, e agora se mostrando um nada. Ora, o que é a vida, o que o homem, o que o mundo senão uma folha seca à vontade do vento, um grão de areia em prenúncio de vendaval, uma lágrima de orvalho ante o primeiro sol? Tudo e tanto nada, assim a vida, assim o homem.
Parecia realismo fantástico, uma situação imaginária, uma realidade possível de acontecer somente por devaneios ou ilusões. Mas ao lado do rio de sangue, ao lado daquela veia aberta jorrando a dor e o sofrimento, estavam pessoas entristecidas, com olhares de angústia, descrentes de tudo, com mãos trêmulas depositando flores e acendendo velas. Parecia um jardim iluminado, mas nada mais que uma dolorosa consagração aos mortos. No silêncio, o grito aflito pelos inocentes alvejados pela bestialidade humana.
Parecia uma coisa do outro mundo, algo tão inimaginável de acontecer que logo se imaginou o fim dos tempos. Como as profecias apocalípticas preveem o fim dos tempos também através de uma enxurrada de lama que desce de boca aberta e devorando tudo, então talvez ali estivesse a voracidade mortal em ação. E estava mesmo, só que tão real como a dor sofrida dali em diante. Após o avanço impiedoso do lamaçal e as vítimas transformadas em escombros de barro, somente restaram as bocas em preces, as mãos frágeis unidas em oração e as velas acesas clamando a piedade divina.
Preces, flores e velas aos mortos. As manchetes dos jornais e o noticiário televisivo se tornaram em verdadeiros obituários de tragédias e mais tragédias, todas provocadas pela insensatez humana, por ataques terroristas, pelas perseguições religiosas de raça, por desvirtuamentos na fé que se voltam à dizimação de vidas inocentes. Todos os dias e a nova e já tão velha notícia: o rompimento da barragem que deixou vítimas e desaparecidos, a série de ataques terroristas provocando mais de uma centena de mortes, explosão em mercado africano que deixou dezenas de mortes, grupos extremistas que assaltam vilarejos e levam crianças, suicidas que levam um falso deus na cintura e acendem o pavio da crueldade, pessoas fugindo das guerras e morrendo nas travessias. A todo instante uma morte no mundo motivada pelo terror, pelo fundamentalismo, pelo extremismo religioso e covarde. A todo instante dezenas, centenas de vitimados pelas razões mais insanas.
Quantas preces ainda terão que ser invocadas em nome de inocentes vitimados pela própria ação humana? Quantas flores ainda serão depositadas em altares pelos muros do mundo em homenagem aos mortos pela lama, pela bomba, pelo disparo, pelo fogo, pelo ataque covarde? Quantas velas ainda terão que ser acesas para iluminar a memória dos falecidos pela vileza humana e, colocando-as também ante a face da pessoa em sofrimento, iluminar também o que resta da vida? E quantas lágrimas ainda serão derramadas neste leito por onde escorre o desalento, a tristeza e o sofrimento?
As bocas estremecem, se cansam, os lábios anestesiam de tanto orar. As preces, por mais repetidas que sejam, parecem não bastar. As flores já não são suficientes em todas as primaveras possíveis. E todas parecem nascidas murchas e tristes pela sina que terão. As velas apenas chamejam com pouca luz. A ventania da dor é forte demais. E as lágrimas já não têm nascentes. Tudo ressecou pelo sofrimento. O mundo não merecia morrer assim.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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