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terça-feira, 26 de julho de 2016

SERTÕES - MITOS E PERMANÊNCIAS


*Rangel Alves da Costa


Antecipo-me afirmando que o termo mito aqui utilizado não se refere à fábula, ao sobrenatural, fantasias ou deuses e semideuses de universo imaginário, mas do mito enquanto realidade de pessoas que simbolizaram feitos históricos de reconhecida importância nos seus contextos de ação. Neste sentido, a feição mítica se volta à força do personagem, que se torna de caracterização heroica ou além do comum da vida.
Assim, não o mito da Cobra-Grande ou do Saci-Pererê, não o mito do Hércules poderoso nem do Zeus mais poderoso ainda, mas do mito real, vivificado na importância, na luta ou na ação, e expressado em homens e seus feitos. Também o mito, enquanto reconhecimento pela abnegação, daquele que verdadeiramente se entregou a causas desacreditadas, a sacrifícios e gestos por muitos renegados. Por que não reconhecer o vaqueiro enquanto ser heroico, igualmente o mateiro e o caçador, o pescador ribeirinho e o desbravador das entranhas matutas?
Ressoa como mítica a expressão de ser o sertanejo acima de tudo um forte. O mito está exatamente na força da luta, na tenacidade no enfrentamento das dificuldades e sofrimentos. A fabulosa vida daquele que sobrevive como verdadeiro milagre ante a pobreza e a falta de quase tudo. Tudo se torna mito à medida que se diferencia da normalidade esperada. Neste sentido, grande parte da vida sertaneja é mítica ao se concretizar a partir de sacrifícios e, ainda assim, tornar-se grandiosa história.
Eis que, em verdade, homens existem que muito se diferenciam de outros a partir dos caminhos diferenciados que percorreram. Quando velhos profetas e missionários nordestinos arrebanharam multidões ao seu redor, suas ações foram mitificadas para a posteridade, pela crendice ou fanatismo popular, ou não. Quando iletrados libertários se insurgiram contra regimes, governos e governantes, injustiças e perseguições, suas lutas inglórias permitiram reconhecimento mítico.
Quer dizer, os feitos extraordinários, difíceis ou encorajados pela justificativa da luta, tendem a ser mitificados. Com o passar dos anos, a oralidade vai transformando ações em feitos quase lendários, e assim vão nascendo verdadeiros heróis ou mitos populares, a exemplo de Padre Cícero Romão Batista, o Santo Nordestino; Frei Damião, o Padroeiro Sertanejo; Antônio Conselheiro, o da Boa Causa; Luiz Gonzaga, o Rei do Baião; Virgulino Lampião, o Cangaceiro Maior.
Até mesmo o coronel nordestino, senhor do mundo e além, alcança importância mítica. Para o bem ou para o mal, inegável a participação do coronelismo na formação nordestina. Daí o surgimento de nomes até hoje recorrentes nos livros sobre o cangaço, o mandonismo, o clientelismo, o voto de cabresto, o poder político e pessoal. Nomes como Chico Heráclio, Chico Romão, Delmiro Gouveia, Veremundo Soares, Zé Abílio, Horácio de Matos, João Maria de Carvalho, João Sá e Elísio Maia.
Tais coronéis não foram somente senhores de casa-grande, latifúndio e poder, mas determinantes no destino de acontecimentos, da política e da história. Suas ações, por que mandavam e desmandavam, se faziam senhores da vida e da morte, comandavam a vida social e política nos seus contextos de ação, acabaram determinando um forçado reconhecimento nos seus tempos e adiante. E principalmente porque a vida moderna ainda não se desvinculou totalmente daquela de feição coronelista.
E não há região brasileira que tenha produzido mais mitos que o Nordeste. Talvez pela crença maior de seu povo, sua fé e força de preservação dos feitos que lhe diz respeito, a verdade é que o povo nordestino - e mais de perto o sertanejo - tende a quase sacralizar alguns personagens. Não precisa que a História assim os reconheça nem que a simbologia os eleve a vultos nacionais, bastando que esteja enraizado na sua memória.
Nos sertões, aqueles mesmos sertões descritos por Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Gilberto Freire, Jorge Amado e tantos outros, onde a História é sempre permeada de luta, de religiosidade, de sacrifício e de esperança, o mito surge mesmo no inimaginável, de repente elevando à categoria mítica personagens controversos e que facilmente transmudam de herói a bandido.
Mesmo assim, ainda que o mito seja reconhecido e devocionado apenas por alguns, é o seu enraizamento como tal, a sua constância afirmativa, que provoca a sua valorização. E, neste passo, também o reconhecimento de que os lendários personagens da história nordestina tiveram existência delimitada, pois dificilmente surgirão figuras de tamanha proeminência que possam se enraizar como mitos perante as camadas mais populares da região.
Haveria de se indagar, então, o porquê do não surgimento de novos mitos. Ora, os tempos são outros, muito mais desenvolvidos, de distâncias mais curtas, quase sem espaço para surgimento de contextos sociais únicos e personagens que se solidifiquem perante meios delimitados. Não há mais espaço para os grandes profetas, os grandes beatos, os grandes justiceiros. Nos sertões sem limites, tudo o que acontece já nasce generalizado. Permanece apenas o que enraizou no sentimento do povo.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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