O RIO QUE PASSA PELA MINHA ALDEIA
Rangel Alves da Costa*
Tenho um rio, um rio na minha veia, o mesmo leito dos tempos, percurso que tristeza semeia e que passa pela minha aldeia.
Quem sou eu senão uma aldeia distante de tudo e tão próxima e dentro de mim, cuja aridez desalentada no chão do olhar se molha apenas desse rio que passa e corre sinuoso pela minha aldeia?
Deixei o barco distante, atrás dos montes, porque na minha aldeia só se navega com o passo, com o pensamento, com o sentimento. E ao navegar num leito azul de sangue e de cor, de pele e idade, de herança e saudade, nunca vou além do passo que caminha dentro de mim em busca da minha aldeia.
Tudo é tão perto e fácil de encontrar, e nunca fui além com medo do mar, bastando esse rio que sei navegar, porque sou seu leito, sou seu barco e vela, margem e porto, saudade demais e abraço apertado. E é sempre noite quando o barco chega e traz seu navegante à luz do luar.
Qualquer dia desses irei adiante do norte do coração em busca da nascente do rio que passa pela minha aldeia. Sei que dói navegar assim. Um remo no olhar, uma bússola na lembrança, um sol a me queimar o ontem, qualquer dia desses alcanço a foz que minha sede quer tanto beber.
Descendo pelas montanhas desconstruídas, rompendo os penhascos de tudo que se desaba, rolando em meio às pedras que haverão de retornar ao pó, talvez encontre a nascente do rio que passa pela minha aldeia. E quando a noite chegar estarei onde começa o veio que corta o meu corpo/leito e vai inundando, naufragando tudo.
Minha aldeia é morena, é quase desabitada, é tão longe e tão perto, é rica e carente, é alegre e triste, é solitária e solidão, é aldeia e pessoa. Por ser humanamente aldeia, é corpo que se descontenta com a tristeza, o abandono, a esperança que só vive esperando. E após o entardecer, quando as águas das relembranças vão subindo e as ondas de saudades começam afluir mais fortes, então minha aldeia se inunda completamente.
Quando as águas vão emergindo o construído e as mãos acenam para que o barco chegue sozinho, ouço minha voz dizendo que há um porto seguro sem sair do lugar, uma montanha onde posso encontrar abrigo. Fecho os olhos para encontrar a luz, para pensar melhor, para o encorajamento, e só assim descubro onde nasce o rio da minha aldeia.
Não sei bem qual seja mais esse mistério da vida, essa estranheza em mim, mas se fecho o olhar as águas começam a baixar e só assim encontro a nascente do rio que nasce, que passa, que vive na minha aldeia. Se meus olhos continuam fechados então meu corpo já não estará submerso, já poderá tatear até a porta e gritar seu nome.
E eis que descobri esse mistério da vida, esse destino da minha aldeia. Se dos meus olhos fluem as águas e as enchentes que se derramam, que inundam e faz brotar tanta aflição, então sou eu o dono desse rio, desse olhar nascente, dessa minha aldeia encharcada de ondas tormentosas.
Se sou dono de tudo, e ainda por cima sou dono de mim, farei da nascente que tenho no olhar um meio de encharcar de esperança a minha aldeia, porém sem ter mais que chorar ou derramar o mundo pensando que é salvação.
Enquanto ela não vem, porque um dia ela virá, caminharei saltando as pedras do meu leito seco lendo e relendo Pessoa, um canto sobre outra aldeia, sobre outro lugar:
“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia/ (...) Toda a gente sabe isso/ Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia/ E para onde ele vai/ E donde ele vem/ E por isso porque pertence a menos gente/ É mais livre e maior o rio da minha aldeia/ (...) Ninguém nunca pensou no que há para além/ Do rio da minha aldeia/ O rio da minha aldeia não faz pensar em nada/ Quem está ao pé dele está só ao pé dele”.
De leito vazio, o barco não pode singrar, ela não vai chegar. E só por um instante chorarei para inundar o rio de minha aldeia. Depois tentarei acenar, abrir os braços em sorriso.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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