CONVIVENDO COM A HISTÓRIA
Rangel Alves da Costa*
Verdade é que tudo é História. Perto ou longe de cada um, e dependendo da situação, o segundo passado ou o que irrompe agora, poderá ter a característica de fato histórico. Contudo, sempre na dependência de o acontecimento ser valorado como tal. Às vezes, somente muito depois é que isto ou aquilo é considerado de relevância.
Assim, queira ou não, cada um vive um percurso histórico, faz História, é ator nesse intrincado universo de acontecimentos. Aquilo que conhecemos por fato histórico, com seus vultos, datas, episódios, faz parte dessa construção imperceptível do dia a dia, vez que dificilmente alguma coisa surge com feição de acontecimento histórico relevante.
Votar é um acontecimento histórico, como também uma formatura ou a fundação de uma empresa. Mas não tem, contudo, o peso, por exemplo, o peso de participar de uma revolta ou revolução, de lutar para a derrubada de um corrupto ou um ditador, de viver na pele um tempo de dor por alguma grave crise econômica. Aí se diz que viveu e conviveu com a História, foi personagem atuante.
Contudo, nem todos sabem nem valorizam a História nem procuram tirar proveito da riqueza histórica que está diante de si. Verdade é que a importância dos fatos, das pessoas e situações só são reconhecidas – e valorizadas ou não – quando tudo passou ou alguém deixou de estar presente, morreu. Ora, muitas vezes uma lenda histórica vive bem ao lado e ninguém dá a mínima importância.
Ali na outra rua mora um poeta famoso, imortal acadêmico, pessoa simples e humilde, acessível e bom proseador. Talvez ninguém se interesse muito em ir até sua residência, perguntar se está com saúde, disposto a uma palavrinha, dialogar com a sabedoria poética por alguns instantes. Ele já está velhinho e mais tarde, quando a morte brincar com a sua imortalidade, certamente saberá pela imprensa o desaparecimento de um grande homem e vai se perguntar por que não aproveitou melhor o seu convívio.
É sempre assim. As pessoas existem, são importantes demais enquanto seres humanos, tanto pelo nome como pelas realizações, e até surgem as oportunidades de conhecê-las em vida, de ladear seus caminhos, de conviver brevemente, mas só vai achar que deveria ter feito mais, partilhado mais, quando estas partem e passam a representar a memória histórica.
Nunca tive a oportunidade de conhecer Jorge Amado pessoalmente. Não haveria oportunidade melhor de dizer apenas que ainda hoje convivo com seus meninos grapiúnas, com seus coronéis e jagunços emancipando o mundo através da tocaia e da bala; de asseverar que de vez em quando me vejo entrando nos bataclãs da vida de charuto na boca, dialogando suores sexuais com prostitutas do recôncavo; dizer que ainda ouço os batuques nos terreiros, vejo a lindeza das mães e pais-de-santo, sinto o cheiro álacre das ladeiras cimentadas com o sangue negro guerreiro.
E Jorge, o bom Amado, é desse tempo, dessa vida de ontem e que agora se faz uma saudade imensa. Ainda que não tivesse acesso ao escritor como tenho com tantos outros personagens que somente serão importantes mais tarde, desde já tudo parece um tempo perdido demais nessa vida ao não perceber outro tipo de convivência que é preciso ter com tudo que seja História. O povo, a gente mais simples, tudo é histórico demais para ser relegado.
Gostaria de ter convivido com Lampião sim, fosse numa condição de cangaceiro ou não, como volante ou não. E quem teve a oportunidade de partilhamento do chão e da vida sangrenta queimada de sol, certamente que imaginaria o nome do homem como marco infinito da História. Ainda assim não valorizou aquela oportunidade porque o ser humano sempre descuida em dar a importância devida aos momentos mais importantes na vida. E por isso mesmo, por não ter o cuidado de aprofundar a amizade, restará apenas um tênue conhecimento de como a pessoa era, para mais tarde, infelizmente, inventar e dizer sobre o outro aquilo que sabe não ser verdade.
Não tive a honra de conhecer o Capitão, porém me foi dado o prazer de conhecer e conviver com pessoas muito ligadas a ele. E mais uma vez me penitencio por não ter buscado nessas fontes amigas muito mais do que o quase nada conseguido. Conheci e convivi com os coiteiros Durval Rodrigues, Mané Félix e Adauto Félix; sentei muitas vezes no colo de Adília, conversando inocentes proezas; avistei Sila muitas vezes em casa, entrando e saindo num convívio quase familiar.
Mas sobre tais fatos falarei depois. Antes, porém, tenho a dizer que a História, através dessas pessoas, passou ao meu lado e me chamou ao convívio mais profundo. Não aproveitei porque a vida também é feita de oportunidades perdidas e do muito não realizado que faz tanta falta.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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