SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 14 de agosto de 2013

RETRATOS


Rangel Alves da Costa*


Não sou mais o que era antes. O tempo quis assim. O calendário foi passando, mudando o retrato em mim. O tempo cega a imagem, a idade cuida do fim.
Carrego outra moldura, madeira envelhecida ornando o que fui um dia. No espelho embaçado, aquilo que se chamava alegria. No percurso da estrada, a curva da nostalgia.
Um velho baú na memória, restos empoeirados entrelaçados na história, todo o percurso de uma vida, desde o tropeço à vitória. Que um dia venha o troféu, que um dia chegue a glória!
Talvez na parede ainda caiba mais um sorriso amarelado, tomado de teias de aranhas, de brilho no olhar embaçado. Eis vida que foi vivida num caminho inacabado. Nó desfeito de um dia e novamente enlaçado.
O menino de chupeta e felicidade, um sorriso sem maldade, um viver com sinceridade. Mais tarde continuaria assim, o mesmo homem menino em outra realidade. Agora muito mais dura, agora sem piedade.
Cabelo no brilho da brilhantina, a calça curta da infância que desatina, a inocência e o que a ela se destina. Viver e viver, brincar e brincar, nessa idade a maior sina. Ah, felicidade de um dia, saudade que ninguém imagina!
Eis que chega o dia de o olho mirar adiante. Tudo passa, nada é constante. O calendário esvoaça num rompante, tudo se apressa e nada mais se mostra o bastante. Ao invés do prazer, a dor lancinante.
A moldura do retrato vai perdendo sua cor. A infância já não é doce sabor, pois o menino em adulto se tornou. E o que não passou foi o vento que levou. Ventania e vendaval, no varal da história o resto de mim que ficou.
Por trás da moldura, além do espelhado, agora o jovem que ali é retratado. Não tem mais o mesmo sorriso, se mostra um tanto ensimesmado. Olhando o futuro, talvez de nada admirado. O medo, a dúvida, um viver agoniado.
Na parede ainda nova o retrato se sobressai a tudo. A força da idade, e nela o grande escudo. Tempo de pensar diferente, ter caminho de espinho ao veludo, no grito a ser dado sempre o mais agudo.
A moldura envernizada parece de feição infinita. Também a fotografia, com outra aparência, mas bonita. O amanhã ninguém sabe, se beleza singela ou beleza esquisita. Mas não há feição singela em vida que seja aflita.
O retrato parece estar pincelado com cores de menor pujança. A boca de agora esconde o sorriso da criança, o rosto irradiante ganhou mais temperança, o olhar feliz mira somente a lembrança. Agora só a saudade daqueles idos de criança.
Por muito tempo o retrato teve seu lugar apropriado. No cantinho ou na parede, sempre o maior cuidado. Eis que o vento chegou tão malcriado que balançou o retrato e quase o deixou revirado. Assim também é o viver, barco pelo mar açoitado.
Tempo, tempo, o calendário voraz, traz vento e ventania, sempre quer mais. Sempre quer mais, nunca se satisfaz, e vai transformando tudo em marca profunda e sagaz. O que se imaginou infinito um sopro logo desfaz.
E o brilho da moldura, antes exuberante e envernizada, foi perdendo o viço no passo da longa estrada. E o moço que estava ali, feliz com sua jornada, viu o arco-íris da idade ser recoberto a pincelada.
Pintor esse mais ingrato, pois foi tirando a cor da existência e mudando a cor do retrato. Trouxe o pincel do outono e a tristeza de fato. Foi destruindo a moldura, da vida fez artefato, do homem fez substrato.
Certamente um dia, com porta aberta e a ventania, a parede caia depois de tanta agonia. E no vão de tudo que esvai, talvez o retrato renasça do pó que por cima cai. E na memória, do pó para a história levantai.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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