SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

DÓI DE DOER TUDO, SEU MOÇO! (Crônica)

DÓI DE DOER TUDO, SEU MOÇO!

Rangel Alves da Costa*


Os mais velhos contavam, e hei de acreditar sempre na sabedoria dos tempos, que a vida pra ser vivida é mais fácil na pobreza do que no progresso. E mostravam, com exemplos que eram lições, que o mundo decorou se desenvolver, mas nunca aprendeu a prosperar.
Quem sou eu para discordar da inteligência da terra, da boca da história, do olho eternamente mirando a vida debaixo do sol, da mão calejada de carregar nas costas o peso dos dias, do pé que caminha pela mesma vereda desde que o mundo nasceu sertão. Duvido não meu irmão, sou doido não!
Desconfie do anel, não dê importância ao nome, desacredite na formação e no cargo, nem queira saber do que diz o livro nem os dados da estatística, mas por tudo na vida confie no seu Gentil. É pobre, é analfabeto, é sertanejo, mas não há no mundo quem tenha mais valia na palavra do que o homem, a não ser outro caboclo da mesma estirpe e chão.
Pois bem, o tal do Luis Gentil, caboclo de roçado de estaca, de pastagem de malhada e quintal, um dia me chamou debaixo do umbuzeiro diante de sua moradia e num proseado de compadre que se acredita me deixou lá embaixo.
Envergonhado fiquei porque jamais podia acreditar que a filosofia sertaneja não se contentava em buscar as explicações últimas nas coisas, mas sim apontar a verdade tal qual peixeira que vai cortando a urtiga até encontrar a saborosa carne. Assim, mostrando na cara o que é e o que não é, e pronto.
E me disse o homem que se não fosse inventado esse negócio de cidade grande, de comércio, de tanta gente desconhecida andando de um lado pro outro, as pessoas seriam muito mais humanas e amigueiras. Em meio ao desconhecido, as pessoas também passam a se desconhecer, os parentes se distanciam, as famílias se dissolvem, cada um vai pro seu canto e de repente todo mundo está sozinho em meio ao vazio cheio de gente.
E olhe pra porta e pra o quintal e veja quanta diferença faz. Mas falo dos quintais antigos e não dos de hoje, digo da soleira da porta de hoje e não de antigamente. Nos tempos adormecidos, seu moço, quintal era farmácia e açougue, era mercado e feira, era prato e colher, pois tinha de tudo. Tinha o mastruz, a cidreira, alecrim, hortelã, o manjericão e o boldo, e tinha muito mais.
Nesse mesmo quintal a galinha corria e ciscava solta, o pato, guiné, o peru; mais adiante, lá perto do riachinho, havia o chiqueiro dos porcos. Pelos costados da cerca se plantava a melancia e a abóbora, o maxixe e a fava. Era planta de fruta que parecia pomar, coisa muita de não se acabar: goiabeira, cajueiro, mangueira e tudo o mais. Lembro de um umbuzeiro que anoitecia sãozinho e amanhecia doido varrido de doçura que fazia espalhar pelo chão.
Agora arrepare pra porta da frente de hoje em dia. É toque-toque, seu moço, com gente de mão aberta de palmo em palmo. Homem feito, mulher e menino, tudo vivendo pelas portas a implorar qualquer de comer pra enganar a barriga. E por que isso, seu moço? Mas só pode ser porque fizeram com que a terra de nascimento abandonasse seus os filhos para acolher o progresso, com a ilusão de que a riqueza seria dividida entre todos. E deu no que deu.
Prefiro sonhar com o pingo de chuva do que me arriscar por aí. Cada história que ouço contar arrepia mais do que tanta história que vejo. E olhe que vejo tudo, vejo muito, e não sou de mentir. E vou contar uma coisa que tudo mundo pode achar que é mentira, mas não é não.
Certa vez cortaram tudo e deixaram só um pé de mandacaru verdejante onde antes era mataria. Disseram que não podiam cortar o danado porque ele simbolizava o sertão. E foram passando máquina ao redor, abrindo buraco ao redor, construindo por todo lado. Mandacaru ficou sem sol, ficou sem ar, ficou sem saber o que era mais. E um dia mandacaru morreu.
E então os homens disseram que ali, com a morte do mandacaru, estava a prova maior de que o sertão também deve morrer em nome do progresso. E foram jogando pedra, jogando brita, espalhando cimento. Só sei que dói de doer tudo, seu moço!




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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