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domingo, 19 de dezembro de 2010

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 7 (Conto)

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 7

Rangel Alves da Costa*


Maria não teve nem tempo de pensar nada, de dizer nada, de ter uma reação apropriada para o momento. Apenas sentiu seu pai se aproximar com um raio fumegante.
O pai se aproximou, deu-lhe um bofetão e seguiu em direção ao espelho, tirando-o de onde estava e ali mesmo fazendo-o em mil pedaços.
Esse maldito espelho! Esse maldito espelho! Esse maldito espelho! Repetia enquanto destroçava moldura e vidro, acabava com a luz, com o reflexo, com os rostos e as pessoas nele um dia espelhadas.
Esse maldito espelho! Chutava os cacos por todos os lados e dizia que sabia quem havia levado para ali aquele maldito espelho. E saiu feito raio, feito trovão, feito tempestade destruidora.
Estirada no estrado da cama, espalhada como folha jogada ao léu, mas com a persistente força de não chorar nem sentir dor, Maria começou a ouvir uns ruídos bem fortes e ameaçadores.
Na cozinha do barraco, que ficava parede com parede com tudo, seu pai jogava toda a ira contra sua indefesa mãe. Gritava, xingava, acusava disso e daquilo, batia e batia mais.
Em meio ao barulho das pancadas ouvia-se a mulher dizer que Maria já era mocinha, que não era bicho não, que precisava viver, que precisava deixar aquela vida.
E enquanto apanhava ainda encontrava forças para dizer que a filha ia enlouquecer, ia perder o juízo por não saber o que existe no mundo lá fora, que nunca existiu ninguém no mundo que vivesse presa pagando pelo crime de ter nascido mulher e bonita.
E quanto mais apanhava mais encontrava forças para falar que se fosse Maria arrumava os panos de bunda e ia embora dali, nunca mais colocaria os pés naquela maldita casa onde vivia trancada feito bicho.
Maria era gente, era pessoa, era mulher, era nova e tinha uma vida pra ser vivida, era a esperança em pessoa, era um futuro que estava sendo desprezado. Era tudo de bom, menos bicho, como ele pensava.
Cessaram os açoites porque a força não possui o dom de calar a verdade. Muitas vezes o agressor desanima da agressão porque parece que não está causando os efeitos desejados, não está causando a dor e o sofrimento nas pessoas.
Foi o que aconteceu ali, tanto com Maria como com sua mãe. Apanharam sem reclamar da dor, sofreram violências sem demonstrar o prazer do sofrimento aos olhos do agressor.
Maria calou, silenciou, apenas viu e ouviu outro espelho seu ser destruído. Calada estava e calada ficou. Se havia dor, estava guardada, contida, escondida, feito vulcão que adormece nas pessoas.
Contudo, essa é a dor inesquecível, insuportável, que mais fere a alma e o coração, que se esconde para aparecer um dia, a qualquer instante, feito aquele vulcão adormecido.
Com a mãe de Maria foi um pouco diferente, pois esta não demonstrou dor ou sofrer, mas prontamente reagiu com palavras, retorquindo a violência sem violência, mas causando no agressor a dor maior de ouvir merecidas verdades.
Ficou lanhada, ficou marcada, ficou com o olho arroxeado e até com um filete de sangue no braço, mas não teve a língua cortada, a boca fechada, a palavra cerceada. Por isso falou e disse, e disse para marcar, para doer, para jamais esquecer.
Enquanto o homem se metia nos matos para pensar nos erros cometidos e viver silenciosamente sua dor. Bicho também sente, também sofre, também sabe quando comete um erro.
O bicho chorava, se retorcia por dentro, mas continuava firme em dizer a si mesmo que poderia morrer de desgosto, mas filha sua não era para o mundo não.
Enquanto isso mãe e filha se encontravam. Parecia que não tinha acontecido nada, mesmo com as marcas visíveis em cada uma.
A mãe disse que já sabia sobre o espelho. Maria disse que esquecesse. A mãe perguntou o que poderia fazer agora. E ela respondeu que por enquanto nada, mas que no dia seguinte precisaria.
A mãe olhou assustada. Maria pediu para não se preocupar e começou a explicar um plano que colocaria em prática no dia seguinte.


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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