SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 21 de maio de 2017

UM CAFEZINHO, AGORA...


*Rangel Alves da Costa


Aqueles meus afetos estão perdidos e agora só me resta uma xícara de café. Mas amo do mesmo jeito. Sem boca pra beijar, roço o lábio na borda da xícara e me imagino sorvendo um beijo gostoso. Não quero pensar nisso agora. Já desde mais de duas horas que não tomo um cafezinho e necessito de seu afago. Uma pequena xícara, apenas, mas como uma companhia que me ouve e fala baixinho. E a tudo compreendo.
Não vivo sem um cafezinho. Acaso não houvesse nem o pó nem o grão, certamente derramaria na xícara um punhado de noite sem lua e depois, lentamente, sorveria um instante de alegria e prazer. Mas lá dentro a água já ferve e a xícara já está ao redor, o café também, então não há com o que me preocupar. Porém preocupo-me sim. Basta levar a xícara à boca e é como se no caldo oloroso e enegrecido também chegasse uma saudade grande. Saudade amarga, fervente demais, de coisas tão presentes e tão distantes.
Mas enfrento o medo para tomar um cafezinho agora. Sigo até o fogão e de lá retorno com a pequena xícara que diz muito mais que a largueza do mundo e de tudo. Não há poesia minha que não venha antecedida por um gole de café, não há prosa minha que não surja molhada de café, não há qualquer escrito que não chegue perfumado e com inigualável sabor. Talvez esteja no café minha inspiração, vez que sem qualquer gole também nada sei fazer. Sequer pensar. Depois de um cafezinho e um cigarro eu me torno poeta, profeta, filósofo, um sábio. Mas também menino, também nostálgico, também em busca de mim mesmo através de outros passos passados.
Fogo de chão, de tora e gravetos. A chama valseia pelo ar enquanto a chaleira repousa sobre o braseiro. Um momento mágico na vida interiorana de onde vim. Agora mudou, mas por lá nunca era um café qualquer. Café de verdade, café torrado, batido em pilão, peneirado, pronto para formar o caldo grosso ao ser juntado à água fervente. Daí era só esperar um pouquinho até que as borbulhas começassem a surgir e o líquido oloroso e aromático se derramar pelas bordas. Nem precisava de coador. Dali mesmo ia direto à xícara. E que coisa tão boa de recordar.
Mas quero um cafezinho, agora... E depois mais outro e mais outro. Adoro café. E café negro retinto, forte, sem açúcar, chegando ao oleoso perto dos lábios. Sempre gostei de café, mas não nesse metodismo apaixonado. Por muito tempo experimentei o café comum, desses servidos pelas mesas de jantares e desjejuns. Lembro-me muito bem que minha concepção de café se iniciou pelo seu aroma perfumado ao entardecer.
Na cidadezinha onde nasci, lá pelos sertões sergipanos mais distantes, o entardecer era uma verdadeira festa ao olfato, senão a todos os sentidos. Dona Lídia primeiro torrava o café em grão, depois batia no café pilão, para mais tarde despejar o pó no caldeirão fervente ao fogão de lenha, pois era muito café para servir a tanta gente ansiosa por uma xícara de seu esmerado preparo. E então, uma festa pelos ares. Quando fui lá implorar um pouquinho na xícara, jamais imaginaria que eu iria verdadeiramente me apaixonar. E me fiz assíduo daquela xícara a todo entardecer sertanejo.
Tempos depois, já na capital sergipana, passei a experimentar café de máquina de balcão. Uma delícia também, pois o autêntico café era despejado diretamente na água fervente da máquina e já descia borbulhando e oleoso. Hoje em dia está muito difícil encontrar um bom café pela cidade. Aquelas máquinas praticamente não existem mais. Os cafés modernos perderam o gosto e a essência. Mas isso não me faz menos apaixonado pelo café, que bebo desde as quatro da manhã até a noite chegar. Infelizmente café solúvel, mas não o que fazer. Esquento a água e depois despejo na xícara já com duas colheradas pequenas de grãos miúdos. Em seguida vou ao portão avistar e sentir a chuva caindo, reabrindo velhos baús na memória e recordando ainda aquele entardecer sertanejo e o café de Dona Lídia.
Por isso que bebo na xícara e na memória aquele cheiro gostoso de outrora. Dispenso o uísque, rejeito o bom vinho, mas peço-lhe encarecidamente que me traga um cafezinho. E agora.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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