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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 25 de janeiro de 2011

DESCONHECIDOS - 4 (Conto)

DESCONHECIDOS – 4

Rangel Alves da Costa*


Mesmo vivendo na e da prostituição, fato que enoja alguns imorais moralistas, Soniele certamente cairia nas graças da milionária Doranice, uma viúva herdeira de um patrimônio a se perder de vista. A viúva gostava de ajudar pessoas decididas.
Quando Soniele largou a função no cabaré da Madame Sofie lá pelas oito horas da manhã, entristecida porque durante a noite tomou apenas duas doses de vodka aguada e não arrumou nenhum cliente, estando, portanto, sem nada no bolso, nem imaginava o que se passava bem distante dali, na metrópole Nova Paulo.
Diferentemente da mocinha do cabaré que estava sem tostão pra nada naquela manhã, a viúva Doranice estava sentada no solar de sua mansão, defronte ao imenso jardim, pensando em como ajudar pessoas realmente necessitadas. Queria ajudar meninos de rua, prostitutas, drogados, todos aqueles que quisessem sair da vida difícil que levavam.
Dinheiro não faltava para a viúva. Para se ter uma ideia, aquela mansão era a menor das muitas mansões que ela possuía naquela metrópole e até no exterior. Os velhos amigos até brincavam dizendo que uma mulher tão rica morava naquilo que possuía de menos valor.
Esta senhora de idade já bastante avançada, mãe de dois homens já casados e com netos, primava pela lucidez e pela condução altiva dos seus negócios, mesmo tendo os filhos como administradores. Nada poderia ser feito sem o aval e anuência dela, e os herdeiros respeitavam e temiam suas ordens.
Com tanto poder em mãos, logo se poderia imaginar que ela seria uma velha ranzinza, chata, vivendo somente da riqueza para riqueza, sem amigos e fechada no seu maior de luxo e fartura. Nada disso. Dona Doranice era pessoa simples, amigueira, sempre atenta às dores sociais que tanto lhe afligiam.
Morava sozinha por opção, mesmo que rodeada de mais de dez empregados. Morava sozinha e gostava de ficar assim ao amanhecer e entardecer, no tão querido solar onde sentava tantas vezes com o querido e falecido esposo. Era lá que os pensamentos fluíam e as ideias surgiam.
Foi o coração bondoso dela que amoleceu o coração petrificado dele, tornando-o um homem sensível e caridoso. Daí que dessa união para fazer o bem foram surgindo hospitais, bibliotecas, centros de recuperação e muitas outras obras sociais. Agora que estava viúva procurava continuar doando uma ínfima parcela do muito que tinha para os que mais precisavam.
Esse coração de ouro era nordestino. Nascida na região do Coité, seu nome era uma junção dos nomes da mãe Auxiliadora com o pai Aniceto, daí Doranice. Moça bonita na juventude, continuava uma bela mulher de olhar distante e ainda sonhador.
Veio para sul quando a família arribou com medo da seca. E um dia, já mocinha, trabalhando numa fábrica da família do falecido esposo, o destino fez com que o rico encontrasse a pobre e foi amor à primeira vista. Casaram assim que venceram a batalha do preconceito da tradicional família dele com relação a ela.
Planejava agora fazer uma longa viagem, uma espécie de expedição, ao interior nordestino. Com esse percurso objetivava conhecer mais de perto aquela dura realidade que a imprensa tanto falava e mostrava, e assim tecer estratégias para ajudar mais de perto seus irmãos conterrâneos.
Não acreditava, por exemplo, que famílias continuassem bebendo lama por falta de cisternas nos seus terrenos, que crianças tivessem de comer palma para matar a fome, que as pessoas continuassem morando em casas de taipas caindo aos pedaços. Pensava nisso tudo e ficava entristecida, sentia uma lágrima se derramar.
Talvez realizasse logo seu plano. Talvez não. Mas alguma coisa iria acontecer mais depressa do que ela imaginava. Eis que um desconhecido, ali tão próximo ou muito distante, vai interferir inesperadamente diante dessa realidade.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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