DESCONHECIDOS – 5
Rangel Alves da Costa*
Se a milionária e benevolente Doranice ia mesmo percorrer o sertão para sentir de perto suas mazelas e angústias, para sofrer por vontade própria com situações de dor e sofrimento naquele povo bom e desfavorecido, e se algum dia cortasse as águas do velho Rio São Pedrito, talvez encontrasse o pescador João nas suas margens.
Sob o sol de uma manhã ainda há pouco amanhecida, João, o pescador, o triste, o apaixonado, o tudo talvez, certamente estaria se arrumando para mais um dia de pescaria. Rodeado de apetrechos próprios de pescador, com uma tarrafa remendada mil vezes, linhas e cordéis, agulhas e facas, uma garrafa de pinga pra depois e muitas outras coisas pequeninas que eram sua vida.
Sua casinha ficava ali mesmo às margens, bem ao lado, mas sem ser pegada, da velha e abandonada aldeia de pescadores, num local mais solitário e convidativo para um moço também solitário viver. Mas como gostava de viver essa vida, de estar ali no seu mundo e no meio daquela natureza encantadora, mesmo que o seu apego ao lugar tivesse outros motivos.
Sozinho era; era sozinho. João vivia solitário desde que sua flor de todos os dias subiu aos céus muito antes do acordado. Mocinha linda, morando há pouco com ele, apaixonado pelo seu homem e pela vida de ribeirinha que levava, morreu enquanto paria o seu primeiro filho. Morreram os dois, e quase João morre junto.
Foram os dois embora numa tristeza só. E João ficou ali a assuntar coisas da vida e sem compreender certas coisas da vida. Quase não volta ao batente, quase não suporta se erguer para os dias. No moço calado de olhar distante e triste, que mergulhava nas águas, subia nas serras e viajava sem destino, estava o desalento para ser vencido antes que a feia levasse mais um a qualquer instante.
Tinha vontade sim, tinha muita vontade de colocar outra trigueira dentro do seu barraco e fazê-la de lua e estrela ao anoitecer. Queria amar novamente, mas um amor presente e de carinho e suor. Um desses amores que o pescador pensa que é sereia e depois não pensa mais nada porque enlouqueceu de vez.
Um dia encontraria outro amor, talvez surgido das águas ao entardecer; talvez aparecendo caminhando pela beira do rio e chegando até ele de braços abertos; talvez simplesmente aportando no seu porto de solidão e de tanto amor para dar.
Antes que a felicidade retornasse tecia os seus dias com o encorajamento dos homens valentes e trabalhadores. Levantava ainda quase escurecido, saía do barraco, olhava a barra adiante, passava a conhecer como seria o dia, mexia numa coisa e noutra e depois ia mergulhar nas águas vizinhas. Água de rio é muito fria ao amanhecer, e como aquelas águas doces despertavam outro João a cada nova manhã.
E daí em diante era o corre-corre da sobrevivência, a luta pela subsistência, a força para conseguir colocar na panela coisas diferentes dos pescados de sempre. Gostava de todo tipo de peixe, grande ou pequeno, com ou sem espinha, mas também todo dia enjoava. De vez em quando uma feijoadinha ou um ensopado de carneiro gordo não fazia mal a ninguém.
Por isso mesmo que era tanto corre-corre, tanto vai ali, sobe no barco e desembarca para saber se o dia de pesca tinha valido a pena. Tantas vezes um dia inteiro sem aparecer peixe algum, mas tantas vezes também que com a venda do pescado dava pra um feira grande, comprar uma roupa nova e um perfume cheiroso. Era também vaidoso esse moço João.
Mas o moço João era principalmente um atormentado pela saudade da companheira, pescada injustamente pela rede de São Pedro, aquele lá de cima, talvez. E quando chegava certa hora da tarde, feito um relógio que desperta para o sofrimento, lá ia ele subir na sua montanha para conversar com sua amada.
E foi numa dessas tardes de montanhas e palavras silenciosas que ele sentiu ela se aproximando e dizer que se aprontasse, que tomasse cuidado porque desconhecidos iriam transformar totalmente sua vida.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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