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quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O DIÁRIO SECRETO DA PROSTITUTA (Crônica)

O DIÁRIO SECRETO DA PROSTITUTA

Rangel Alves da Costa*


Os diários são as vozes escritas das pessoas que não querem expressar verbalmente suas confidências, segredos e pensamentos mais intimistas, relacionados aos sonhos, tristezas, alegrias, frustrações, desejos escondidos e o desvendar de todo o sentimentalismo existente.
Próprios dos adolescentes e colegiais, os diários estão permeados não só das rotinas existencialmente conflitantes de uma mente em formação, mas também de verdades que vão além dos simples relatos de anseios e desejos, constituindo-se na única fonte de interlocução da pessoa consigo mesma.
Muitas vezes, é somente no diário que a pessoa tem coragem de se expressar, verdadeira e corajosamente, sem medo das vozes de reprimenda e espanto. Outras vezes, só o caderninho deve saber porque ele sabe silenciar, porque ele é amigo.
O diário de uma mocinha todo mundo imagina o que poderá conter, logo se imaginando confidências próprias de adolescentes. Do mesmo modo da meninha que ainda brinca de boneca e já sabe escrever, mantendo um caderninho que chama de meu querido diário cheio de luas, sóis, nuvens, desenhos de pessoas que conhece e pequenas e encantadoras frases.
Agora, e sobre o diário de uma prostituta, o que será que os outros imaginam que o mesmo contém? Seria bom perguntar a Ismélia, de codinome Lua de Cetim, o que tanto escreve e guarda a sete chaves no seu diário secreto.
E poderia perguntar ainda porque ela fica tão entristecida, com lágrimas caídas e angústia incontida, tremulando a pequenina mão que escreve talvez uma sentença de morte ou uma vida sem sorte.
Somente ela poderia responder, é verdade. Se além da porta era reconhecida como a mocinha bonita e delicada que fugiu do altar para fazer vida, para se prostituir porque parecia gostar de estar envolvida nessa profissão mais antiga do mundo, parecia muito diferente quando entrava em casa e fechava a porta.
Afinal, realizado o trabalho diário, tendo conseguido clientes ou não, verdade é que a mocinha não se prostitui em tudo na vida. Ali em casa, muito mais um quartinho apertado do tudo, era simplesmente mulher, simplesmente Ismélia e como tal possuidora de sonhos, anseios, desejos e frustrações.
Porque que quando começava a escrever no diário era a voz da mulher que gritava na escrita, que se enraivecia e se alegrava em cada página. Eram as lágrimas, as angústias e as esperanças da mulher que prevaleciam.
Um dia, talvez por descuido, colocou o diário dentro da bolsa e assim ele deixou o seu lugar secreto para caminhar pelas noites, se expor ao luar e sentir o cheiro de outros suores. O diário que era mantido escondido foi conhecer o mundo. E talvez por outro descuido, a mocinha subiu para um quarto com um acompanhante e esqueceu o seu maior segredo em cima da mesa do bar.
Uma colega de profissão que a acompanhava não pensou duas vezes ao avistar o diário ali esquecido e se pôs imediatamente a abri-lo para ler o que estava escrito. Passou uma página e mais uma página, e mais outra e mais outra e ficou espantada com o que lia, pois tudo era repetido página a página, dizendo simplesmente o seguinte:
“Durante as noites, no meu leito, busquei aquele que meu coração ama; procurei-o, sem o encontrar. Vou levantar-me e percorrer a cidade, as ruas e as praças, em busca daquele que meu coração ama; procurei-o, sem o encontrar. Os guardas encontraram-me quando faziam sua ronda na cidade. Vistes acaso aquele que meu coração ama? Mal passara por eles, encontrei aquele que meu coração ama (Cântico dos Cânticos, 3, 1-4).
Por que não nasci para essa vida e ainda vou encontrar aquele que meu coração ama”.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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