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quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

ESTUDO PARA CORDEL: A MULHER DO PADRE (Crônica)

ESTUDO PARA CORDEL: A MULHER DO PADRE

Rangel Alves da Costa*


O cordel já tá na mesa, o verso sacia a certeza e o aplauso a sobremesa. Quem não tem vontade de deliciar a verdade, saborear inventividade, comer de garfo e colher tudo que a vida der? Pois é, no cordel tem de um tudo, o visível e o absurdo, o grito de quem tá mudo, a vida sem ter escudo.
Lendas do sertão, um misterioso pavão, o pio do bicho cancão, nego d’água e assombração. Tem história bem distante, de um tempo ainda amante do amor a todo instante. Tem a virgem que emprenhou, o mundo que acabou e o noivo que arribou. Tem comida de feira, muita mulher faladeira, tem causo, tem brincadeira nesse cordel sem fronteira, dessa mão mais que obreira para o verso versejar.
Lampião tá no cordel, no inferno e no céu, quase sempre acompanhado de outro bem afamado Antônio Silvino chamado. Padim Ciço e Conselheiro são da cria do terreiro, gente da religião tem no cordel a missão de mostrar a devoção. Coronéis de outro tempo, mocinhas e seu lamento, tanto amor tanto tormento. Tem tanta ingratidão, filho que levanta a mão pra sua mãe açoitar e por ter feito esse desvão logo lhe seca a mão e vai pro inferno pagar.
Mas como esse povo caminha, vencendo erva daninha, pulando aroeira e matinha, para entrar no cordel pelas mãos do menestrel? Só entra se o artista antevê que vale a pena escrever sobre algum acontecido, coisa meio escondido que o povo tem que saber, seja coisa de alegrar ou mesmo de entristecer, um causo muito arretado ou um pra lá de safado.
Houve um caso desse tipo que eu vou contar agora, num lugar muito pacato, com fama de ser cordato, com o povo no recato em tudo o que fazia, até que chegou belo dia que a fofoca em alardia a todo mundo dizia que um fato importante aconteceu num rompante que até a história do lugar mudaria, pois sobre o padre dizia e o nome dele envolvia a toda beataria.
O padre era ainda novo, bem do agrado do povo e muito mais da mulherada, que ficou encegueirada com tanta missa bonita, com o homem fazendo fita para dar graça ao sermão, não sabendo que assim atiçava coração. E cada missa que havia a igreja logo enchia de não caber mais ninguém, até o ceguinho do vintém teve que mudar de lugar, tudo pra mulherada se ajeitar e o olho no padre botar.
Quando a missa terminava e a fila era formada para a hóstia abençoada, nela só dava a mulherada cheirosa e empertigada com uma mãozinha estendida e na outra escondida uma carta bem escrita falando da vida aflita e confessando coisa maldita, que era a paixão repentina pelo homem da batina.
E outras mais acanhadas ou por não serem letradas, imploravam que o padre as recebesse escondido, num cantinho escurecido, pois precisavam confessar um fato acontecido desde que chegou ali, que foi passar noites sem dormir querendo o marido trair, de todo jeito admitir que agora o seu sentir era com ele dormir.
Na hora da confissão era a maior confusão pra na fila ter um lugar, mas sem nada a confessar de tanto pecado a pecar, apenas pra confirmar da paixão a lhe matar. Uma dizia que à noitinha estaria nua na sacristia, outra perquiria como ele podia abanar o calor que lhe fervia, já outra, de conversa repentina, disse que queria ver lá por baixo da batina.
Namorador que também era, sem pensar em muita espera, o padre começou a marcar a confissão noutro lugar, e a sacristia a se transformar em verdadeiro lupanar. Pra ninguém desconfiar, começou a planejar a própria casa visitar, bastando o marido sair e o sacerdote chegar, comer um pedaço de bolo e o resto a se fartar.
Mas uma beata invejosa, pelo padre não dar prosa, jurou disso se vingar e fez uma carta pro bispo com tudo a relatar, dizendo que o padre dali era o maior garanhão e que não tinha uma sequer sem ter passado na sua mão. Juntou cinco folhas com nome, marido corno e sobrenome, dizendo que ia ver qual a mulher de renome.
E o padre continuava a sua festa fazer, esquecendo até da missa pra outra coisa entreter, mas logo chegou o bispo sem o homem perceber. Assim que entrou na igreja o bispo ficou admirado, fiel tinha por demais, mas nem um velho nem rapaz, mas mulher por todo lado, todas felizes da vida, parecendo ser do padre a preferida.
Aproveitando a mulherada, o bispo foi logo criando grande enrascada. Disse que na noite desse dia em missa anunciaria o nome da putaria que na igreja vivia com o padre a chafurdar, citando uma por uma e sem nenhuma faltar. E que ia convidar cada marido para de próprio ouvido ele mesmo confirmar se tinha sido traído.
Foi a maior confusão, com mulher a desmaiar, outras baixando a cabeça e começando a despistar, sumindo como num raio, sem nem o vento pegar. O padre se acovardou e tudo ao bispo contou sem deixar nada faltar, dizendo o que fazia com as mulheres do lugar. O bispo negou-lhe o perdão e disse que no sermão ia dizer a verdade, ia olhar pros maridos e dizer sem piedade o nome de cada uma das mulheres do seu padre.
Na hora que o sino tocou coisa estranha aconteceu, nenhuma mulher apareceu e só de homens a igreja logo encheu, todos desconfiados, de semblantes abaixados, coçando a cabeça dos lados, querendo logo ouvir a lista dos corneados.
E no meio do sermão, a lista surgiu na mão do bispo todo exaltado, mas uma bala perdida fez ele cair deitado, com a relação na mão e tanto nome ensangüentado. Ninguém quis saber quem matou, salvando o nome de todos, da que traiu e do que ela corneou.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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