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quinta-feira, 31 de março de 2011

DESCONHECIDOS - 69 (Conto)

DESCONHECIDOS – 69

Rangel Alves da Costa*


Cada um foi chegando pouco a pouco. Um trazia uma calça velha, outro uma camisa rasgada; ali uma saia remendada, acolá um lenço de cabeça, pois servia também. Carol levou uma blusinha de malha e Soniele, quase sem agüentar se segurar em pé, levou o vestido que usava pela manhã.
Ninguém sabia como ele soube do encontro, quem o convidou, mas a verdade é que o profeta Aristeu chegou ao local, tirou o molambo que usava como camisa, depois se ajoelhou frente ao rio, fez alguma coisa que bem poderia ter sido uma prece e depois, após pronunciar poucas palavras para que Pureza ouvisse, se retirou e sumiu na noite. Certamente ficaria por cima das pedras ou dos montes observando tudo.
Pureza não quis acreditar no que ouviu, mas ouviu: “Amanhã ela chega, e depois mais ela e mais ele e mais ele. Todos os desconhecidos vão chegar e não haverá prece de lua cheia que impeça das coisas acontecerem. A profecia não nega. As pessoas é que se contentam em rezar para a salvação de hoje. E amanhã, quem salvará todo mundo amanhã?”.
Ainda bem que o povo não ouviu, ficou dizendo a si mesmo a pescadora. Os outros não ouviram, mas não deixaram de estranhar a presença dele ali. O comportamento estranho do profeta, seu aspecto de louco e sua presença injustificada, certamente que causava um certo temor entre todos. Tanto era assim que todos se benzeram quando ele se retirou.
Chegado o momento de iniciar o ritual, Pureza pediu que todos ficassem atrás da linha do círculo e só falassem quando ela pedisse para repetir algumas palavras. E assim foi feito. Todos em pé, em silêncio, ficavam observando a mulher ganhar um brilho diferente no rosto, levantar as mãos para o alto e em seguida fazer o sinal da cruz para todos os lados. Em seguida abaixou-se, acendeu a fogueira, derramou a água, espalhou a areia e jogou as roupas pelo ar. Então pediu: “Repitam bem alto comigo: fogo, água, terra e ar, toda maldade há de passar”.
Então pelos quatro cantos ecoou: “fogo, água, terra e ar, toda maldade há de passar”. E repetiram mais uma vez: “fogo, água, terra e ar, toda maldade há de passar”. E para espanto dos presentes, menos da ritualista, repentinamente chegou uma ventania de fazer barulho no ar, as águas se remexeram fortemente no rio e a lua desapareceu totalmente. Nessa escuridão tormentosa ela gritou: “Passe, pode passar, siga, pode seguir”. E disse mais duas vezes: “Passe, pode passar, siga, pode seguir”.
E quando a lua voltou a brilhar mais intensamente ainda, a fogueira havia apagado, as roupas estavam juntas novamente, a bacia estava cheia de água e a areia era como se não tivesse sido espalhada.
Contudo, não demorou muito e uma gargalhada horrenda e tenebrosa, surgida dos quatro cantos, se espalhou pelo ar e Pureza caiu ao chão desmaiada. Coisa de segundos e o sinistro barulho sumiu pelo ar. Todos correram para sacudir a mulher, jogar água pelo seu corpo, tentar reanimá-la, mas somente uns três minutos depois, quando Quelé teve a ideia de despejar cachaça na boca dela, é que os olhos começaram a se abrir.
Depois de ser levantada Dona Pureza começou a copiosamente chorar. E entre soluços e irresignações conseguia dizer: “Tudo já estava se fechando quando essa coisa ruim achou uma brecha pra sair. E deve tá aí por perto sorrindo da gente, pensando nas maldades que vai continuar fazendo. Mas minhas orações são mais fortes, a fé desse povo é mais forte, e você há de descer ainda hoje pras profundezas de onde saiu. Nossa força vai lhe derrotar, eu sei disso. Até hoje o mal nunca venceu o bem e não vai ser aqui que isso vai mudar. Vai-te pra lá coisa ruim...”.
O problema é que a preocupação com a mulher, com todo mundo correndo para ajudar, fez com que ninguém percebesse que Soniele estava estirada no chão, caída, desmaiada, mas pela doença que lhe afligia. Nem Carol percebeu quando a amiga levou a mão à cabeça e depois desabou ao chão.
Seu corpo parecia um braseiro, suava sem parar e gemia com dores pelas juntas e em cada fio do cabelo. João e Quelé a levaram nos braços até o casebre. As mulheres foram correndo na frente para providenciar remédios. Mesmo ainda desconsolada, Pureza se prontificou a ajudar e se mostrava como uma das mais preocupadas com a saúde da mocinha. O cheiro de chá subiu pelo ar, frascos de remédios foram abertos e começaram a fazer o que podiam com ela.
“Se não melhorar temo que levar ela pra Mormaço logo cedinho. Vamo de barco até Jacaré e de lá damo um jeito de levar até o hospital. O que num pode é ela ficar assim, correndo risco de morrer sem que ninguém preste socorro de médico. Mas vamo aguardar até de manhãzinha que é pra ver se tem melhora. Se num tiver aí eu mesmo pego meu barco e trago praqui”. Disse João, visivelmente entristecido.
Lá dentro, após dar chá forte e comprimidos, Pureza sentou ao lado dela na esteira e começou a passar um paninho no rosto para limpar o suor. Em seguida perguntou baixinho a Carol: “Ela tomou banho de rio hoje?”. E a outra respondeu que sim.
Então a pescadora falou com um olhar entristecido: “Então foi isso. Ela fez o bem e trouxe o mal pra dentro de si. Alguma coisa nas águas gostou tanto dela que tá tentando a todo custo levar ela de vez. Mas não vai conseguir não. A presença dela lá no rio também enfraqueceu ele. Agora já tá sem força nenhuma, tá sumindo de novo. Amanhã ela já vai ganhar força e ficar boa num pulo. Que Deus permita que seja assim”.


continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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