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domingo, 13 de março de 2011

DESCONHECIDOS - 51 (Conto)

DESCONHECIDOS – 51

Rangel Alves da Costa*


Estava como que acostumado a ouvir a falecida esposa, mas já começava a se assustar com as palavras ditas nas últimas manifestações. Não estava gostando nada do fato de ela só aparecer com palavras que traziam temor, preocupação e até o mais puro medo.
Benzeu-se imediatamente, rezou três pai-nosso e foi procurar uma vela para acender na intenção daquela alma que deixava o seu descanso para interferir no mundo dos vivos. Era sua esposa sim, de amor inesquecível e eterno, que tantos momentos de alegria e prazer já tinha lhe proporcionado, mas já estava no momento de sossegar no reino dos justos.
O amor ainda era muito, sabia, sentia, tinha plena certeza, mas a cada aparição ou manifestação era como se a saudade e o sofrimento redobrassem. Bastavam as tardes que ele ficava ali em cima do seu monte sempre lembrando os momentos vividos, conversando silenciosamente com ela e cantando as canções que eles tanto gostavam de cantar ou ouvir juntinhos, trocando carícias e promessas de amor, se amando, como se aqueles momentos já procurassem compensar a sua partida tão cedo.
Quantas lágrimas derramadas nessas tardes de lembranças e de saudades. Muitas vezes pensou que haviam sido injustos levando ela e o deixando com uma cruz que não sabia se poderia carregar para sempre. Se tivesse morrido ao lado dela teria sido uma morte feliz, permitindo que os dois partissem de uma só vez para o eterno amor no reino da eternidade.
Acendeu a vela, trouxe para mais perto de si o velho candeeiro e, de joelhos, orou a mesma prece que sua avó havia lhe ensinado um dia: “Que Deus Pai, todo poderoso, Senhor do Universo, nos ilumine, nos guarde e nos proteja. Que os santos, pilares de eterna luz, derramem sobre nós suas bênçãos. Que os anjos zelem por nós, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém”.
E ainda: “Creio em Deus Pai Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra, creio em Jesus Cristo, seu único filho, Nosso Senhor, que foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado morto e sepultado, desceu à mansão dos mortos, ressuscitou ao terceiro, dia subiu aos céus, está sentado à direita de Deus Pai, todo poderoso, de onde a de vir a julgar os vivos e os mortos. Creio no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, na comunhão dos Santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna. Amém”.
Assim que João acabou de rezar e se preparava para acender o fogo de lenha para preparar um café, eis que ouve uma voz gritando ainda lá fora, lá perto da beirada do rio: “João, João você tá aí. Se tiver saia aí fora um instantinho que tenho um assunto sério para tratar”.
Então imediatamente ele deixou seus afazeres e correu em direção à porta para ver quem gritava pelo seu nome. Assim que saiu do barraco logo avistou o amigo Quelé, um pescador que morava numa pequena vila mais adiante. “Você já soube o que aconteceu com o nosso amigo Climério, João?”, disse o outro, cansado da correria para chegar até ali.
“Não, num sei de nada não. Estive com ele ainda hoje um pouco mais cedo, quando ele passou aqui com o seu barco e ficamos proseando um tiquinho. Mas o que aconteceu com ele Quelé?”. “Mas nem tem falo João...”. E João se adiantou para segurar o amigo que estava em tempo de cair de tanto cansaço e aflição.
“Calma, calma Quelé, respire um pouco. Sente aí nesse tamborete que vou buscar uma caneca d’água pro amigo. Espere aí e só comece a falar quando eu voltar”. Assim que voltou com água fresquinha da moringa o moço bebeu numa golada só, no maior gosto do mundo. Em seguida João pediu para que relatasse o acontecido. E assim contou Quelé:
“O barco de Climério se aproximou da beira do rio e nada do homem trazer ele pra beirada, pra fazer a amarração e depois dar o dia de pescaria por encerrado. A gente, eu e comadre Pureza, que tava proseando perto do barraco, só via o homem lá dentro sem se mexer e o barco se mexendo de um lado pro outro, sem vim nem voltar. Aí a gente começou a achar aquilo tudo muito estranho e fomo até lá pertinho olhar o que tava aconteceno. E foi quano vimo que Climério estava desfalecido, já sem vida. Mais o pior foi depois...”
“Conta logo essa história homem, conte logo tudo porque num tô acreditano”, disse João mais que nervoso e sem um pingo de cor. E o outro prosseguiu: “Quano entremo n’água pra trazer o barco até a beirada o que encotremo foi coisa de não acreditar. O homem tava sem um olho, como se qualquer coisa com um bico tivesse matado ele de bicada. Se foi ave pode ter certeza que ela veio avoando em direção à cabeça dele e, não se sabe como, mas deu uma bicada que puxou o olho com tudo e acabou matando nosso amigo...”.
João pescador nem ouvia mais o que Quelé dizia. Quando este falou em bicada de ave logo se lembrou daquele passarinho de olhos vermelhos que há instantes atrás havia lhe amedrontado. Mas será, meu Deus? Ficou imaginando e olhando por cima das montanhas. Fosse o que fosse, verdade é que aquele bicho danado ainda estava por ali.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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