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segunda-feira, 21 de março de 2011

DESCONHECIDOS - 59 (Conto)

DESCONHECIDOS – 59

Rangel Alves da Costa*


João pescador, coitado, não entendeu uma palavra sequer do que o profeta Aristeu havia pronunciado. Após esse rápido e surpreendente encontro o conceito que o pescador passou a ter do profeta foi de doido varrido.
Apenas isso, um alucinado como muitos que já haviam passado por ali de cajado, barba comprida e roupão, vociferando e anunciando o fim do mundo. E se fosse realmente maluco como pensava nem duraria muito tempo por ali, pois logo ia pregar o fim do mundo mais adiante. Ainda bem que não jogava pedra nem era violento. Tudo isso na concepção de João.
Instantes depois, quando os pertences de Carol já haviam sido devolvidos e os dois pescadores já tinham se retirado, as duas mocinhas, Soniele e Carol, ainda procuravam se apresentar uma a outra, mas procedimento muito difícil e penoso de se fazer, pois nenhuma das duas estava disposta a falar a verdade sobre si.
Logicamente que sem a outra sequer pudesse imaginar o contrário, cada uma deliberou que tudo que dissesse, ao menos sobre certos fatos do passado, não teria nem um pingo de verdade. A mentira passaria a ser utilizada como meio de se preservar a identidade, sem que uma soubesse da vida de prostituta de uma e nem a outra soubesse da riquinha que havia sido presa fazendo parte de uma quadrilha de assaltantes.
Assim, tudo que uma dissesse sobre si ou que a outra perguntasse, a resposta viria sempre de modo que nada pudesse ficar exposto ou levantar dúvidas. Quando, por exemplo, Carol perguntou quem ara aquele rapaz tão bonito na fotografia, mais uma vez Soniele mentiu e disse que era seu irmão Antonio, de quem gostava muito, mas que infelizmente já havia falecido tão novo. E disse até a causa da morte: envenenamento por mordida de cobra.
Segundo Soniele contou à recém conhecida, nem gostava muito de falar sobre o passado. Este era só de amarguras, quase sem infância, adolescência, praticamente nada de bom para recordar. Os pais eram alcoólatras, violentos. Com a conivência da mãe, o pai várias vezes tentou estuprá-la. O irmão nunca pôde fazer nada porque era constantemente ameaçado. Desse modo, para não fazer uma besteira na própria família, ele teve que abandonar a casa e ir morar numa fazenda num lugar mais afastado. Ela, filha única, como não tinha parentes por perto e nem para onde ir, acabou tendo que ficar e suportar todos os tipos de angústias e aflições. Certo dia, os pais arrumaram um comprador pra sua virgindade e ela teve que ser possuída violentamente em troca de alguns tostões. Depois disso não teve mais dúvidas e saiu de casa escondido, com uma malinha com tudo que possuía. Acabou vagando por um canto e outro, trabalhando de empregada em casa de rico e tudo o mais. Até que um dia descobriu que uma tia sua morava ali naquela vila de pescadores. Assim que chegou disseram que a sua tia tinha acabado de ir embora, mas que ela podia ficar por ali esperando ela voltar um dia.
Tanta mentira e Soniele contava como se fosse a maior verdade. E para dar maior veracidade, falava de um jeito manso, leve, entristecido, quase querendo chorar. Ela mesma odiava fazer esse tipo de papel, de mentir sobre qualquer coisa. Porém, diante da outra, ainda praticamente desconhecida, tinha que negar sua história e mentir para que, ao menos por enquanto, ela não soubesse da Jasmim de Fogo, da prostituta do cabaré da Madame Sofie, da quenga que disse não ao filho do Coronel Demundo Apogeu, e que por isso mesmo havia ocorrido uma tragédia. E se todo mundo soubesse que era Gegeu o rapazinho do retrato?
Já Carol procurou não transformar totalmente sua história. Na verdade, omitiu apenas fatos relacionados ao uso de drogas, a não gostar de estudar, aos péssimos amigos que mantinha relacionamentos, aos roubos e à prisão. O resto, principalmente com relação à sua vida familiar, contou praticamente tudo.
Desse modo, disse que era filha única de uma família muito rica, que os seus pais nunca se importaram com a sua criação, como estava indo nem se sentido, mas tão somente em dinheiro, em amizades com pessoas ricas, em festas, em tudo que fosse luxo. E por isso mesmo, por os pais serem tão distantes dela, quando ela disse que ia dar um tempo nos estudos e ia fazer uma longa viagem, eles não contestaram nada e perguntaram apenas de quanto precisaria para tal passeio. Decidiu não ir pra Europa e resolveu conhecer algo muito diferente do que tinha visto em toda sua vida, e era por isso que havia chegado ali.
Depois dessas mútuas mentiras e arranjos, sem que nenhuma ficasse desconfiada da outra, resolveram que não fariam coisa melhor do que tomar um banho de rio naquele mesmo instante, com o sol alto e calor insuportável.
Quando saíram porta afora e já iam correr para as águas avistaram alguns pescadores, dentre eles João, Tiziu e Pureza, em pé na beirada do rio e olhando com olhos agoniados e feições cheias de preocupações para um barquinho solitário, totalmente vazio, que ia bem no meio do rio. Soniele puxou Carol pelo braço e seguiram até eles para perguntar o que estava acontecendo.
E Dona Pureza respondeu: “Aquele barquinho ali é o barquinho da morte e só passa nessas águas da meia-noite em diante procurando quem vem buscar pra levar. Ninguém nunca viu ele passando essa hora não, em pleno sol. E se ele tá passando essa hora é porque coisa ruim vai acontecer, é algum sinal de tempo ruim. Que Deus me livre!”. E todos os pescadores se benzeram.


continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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