DESCONHECIDOS – 54
Rangel Alves da Costa*
No dia seguinte ao enterro do amigo Climério, João só avistou os companheiros de pescaria na sua função de sobrevivência. Cada um se virando como podia e procurando esquecer o acontecido. Era sempre assim por ali, vez que ninguém tinha tempo de ficar remoendo sofrimentos.
Assim, um aceno aqui outro ali sinalizava que tudo havia voltado ao normal, ainda que nem tudo tivesse sido enterrado com o homem. Afinal de contas, o que realmente causou a morte de Climério? Por que um olho havia sido arrancado daquele jeito e com tanta violência que lhe fez perder a vida? Quem ou que havia feito aquilo? Por quê?
Tais indagações continuavam maquinando na cabeça de todos, ainda que não comentassem entre si sobre nenhuma suposição. Soniele confessou a Pureza que ainda que não fosse parente do morto nem tivesse tido amizade com ele, não conhecesse ainda nada dali e não soubesse como era o mundo e o submundo de todos, ainda assim faria tudo para descobrir as causas e os motivos daquela tão estranha morte.
Pureza respondeu que era melhor deixar isso pra lá porque se ela fosse se preocupar com o que ocorria naquele lugar não ia ter tempo nem pra viver. E falou mais:
“Minha fia, sou uma das moradoras mais antigas daqui e nunca vi um lugar tão sossegado e rebuliçoso como esse aqui, nunca vi um lugar ser de tanta paz e de tanta guerra como esse nosso. Você nem de longe imagina o que acontece nas beiradas desse rio, nessa água que vem vindo com cara de mansinha e de repente parece que se revolta com tudo e com todos, nesse povo bom que de repente faz a gente ficar estranhando e com medo. Gosto de viver aqui demais, porque acostumei com essas beiradas, com a pescaria e com o mundo de pescador, mas não é pra todo mundo isso não. Juro por Deus Nosso Senhor do céu que nesse lugar e região acontece coisa que ninguém acredita. Tudo é mistério por aqui, desde a noite de lua clara até a noite de tempestade fechada e pelo dia também, pois quem pensa que a brisa da tarde não vem carregada com certos encantos tá é muito enganado. Quer dizer, a noite misteriosa e o dia com os seus mistérios. Só quem tem a sina de viver por aqui é que deve conhecer pra suportar. Eu mesma, menina, nesses últimos dias tenho tido sonhos terríveis, coisa de enlouquecer, envolvendo todo esse lugar, esse rio, essa natureza e esse povo, mas tudo me vem como se fosse cinzento, brumoso, numa fumaça que não deixa a gente olhar direito o que está acontecendo. Só fico imaginando que coisa boa não deve ser, pois o bem se mostra logo ao nossos olhos e não deixa sombra de tanta aflição. Queira Deus que não seja assim. Só mesmo ele pra nos livrar de todo mal que esteja rondando a gente. É por isso que eu lhe peço que ao invés de querer fuçar o que não tenho mais jeito, que ore, e ore muito mia fia, pois na oração talvez esteja nossa salvação...”.
Soniele não poderia deixar de ficar espantada com o que ouviu, mas quis acalmar a nova conhecida dizendo: “Se tudo está mesmo assim como a senhora diz então temos que saber onde tá a raiz disso tudo. Nem o bem nem o mal estão às nossas vistas, por isso temos que saber onde possa estar a raiz da maldade para destruí-la de vez. Não posso dizer que vou mudar alguma coisa, mas o que puder juro que farei. Agora me deixe ir arrumar minha vida, pois amanhã quero ir no povoado mais perto pra fazer umas comprinhas. Até mais dona Pureza...”.
E a mulher interrompeu a saída de Soniele pra perguntar alguma coisa, porém de uma forma tão inesperada que ela ficou até meio sem saber o que responder: “E você mocinha, quem é, de onde vem e o que veio fazer aqui nesse fim de mundo?”. “Pareço ser nova, mas tenho uma longa história dona Pureza. Juro que vou contar tudinho, mas só outro dia, pois é assunto pra uma tarde inteira e agora tenho que me apressar. Até mais dona Pureza”.
E Soniele seguiu para sua casinha de madeira, bem ao modo dos pescadores, coisa muito simples e já passada de morador a morador, com paus já se desprendendo e telhado voando de palmo em palmo. De dentro de casa ouvia todo o barulho da natureza e o murmurejar das águas correndo, de sua porta enxergava um mundo maravilhosamente encantador.
Assim que chegou, caminhada em torno de três minutos, quase vizinha mesmo, jogou os chinelos na varanda e caminhou descalça até onde a água divisava a terra. Com um vestido comprido, bem leve se espalhando pelo corpo, o vento que batia fazia parecer uma deusa trigueira querendo voar. Cabelos soltos, também esvoaçantes, molduravam aquele instante único para quem tivesse a sorte de vê-la naquele momento de garça na beira do rio.
Com os pés pequenos e dedos quase sem unhas marcava a areia molhada e ficava desejando tirar toda a roupa ali mesmo para mergulhar no rio e saborear levemente da água fria em meio ao calor do dia. Gostaria muito de se despir ali mesmo e até correr, e correr muito e mais, sem destino, seguindo apenas pelas margens até que o cansaço lhe chamasse para lavar a alma com mergulhos.
Mas não podia não. Na verdade não sabia o que podia ou devia fazer ali. Era novata, era estranha, era apenas uma mocinha que havia alugado uma casinha para passar uma temporada. Talvez pensassem assim. Contudo, não tinha planos de partir tão cedo. Trabalharia, arrumaria um empreguinho fosse lá no que fosse, mas seu desejo mesmo era permanecer ali.
Estava disposta a trabalhar em qualquer coisa, porém raparigar mais não, fazer vida mais não. Nunca mais. Depois que saiu de Mormaço e do que soube que aconteceu com Gegeu, decidiu nunca mais abrir as pernas por dinheiro pra homem nenhum, nem que lhe pagasse milhões.
Os seus pés agora só tinham que acostumar com o percurso da sua casinha para o rio e para o meio em redor. Pés, aliás, que começavam a riscar na areia algumas palavras: Perdoe Gegeu, pelo amor que não lhe dei.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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