DESCONHECIDOS – 42
Rangel Alves da Costa*
Por mais que pensasse coisas e coisas com relação ao que estava escrito naquele papel, Dona Doranice não conseguia chegar a nenhuma conclusão. Tinha certeza apenas que se tratava de algo relacionado ao rio, a um menino e um profeta, dentre outras abstrações.
Ora, se o padre havia afirmado que todas as noites vinha tendo sonhos terríveis envolvendo o Rio São Pedrito, então esse rio poderia ter alguma relação com algum sonho que ele havia tido e queria relatar no papel. Apenas isso, o restante continuava puro mistério, mas que urgia ser desvendado.
Como não lhe caberia fazer mais nada ali, então resolveu chamar sua prima até a pousada para resolver logo a questão dela. Iria dar uma quantia substancial para que pudesse, ao menos por algum tempo, sair da vida de miséria e cuidar melhor do seu filho adoentado.
Contudo, quase não sai da igreja diante de tantas pessoas ali já pressupondo as causas das mortes, inventando mentiras e até dizendo que o homem havia sido morto a tiros. E até já sabiam quem havia matado o padre namorador com a mulher dos outros. Logicamente havia sido um marido corneado, logo diziam. Tinha gente que chegava a dizer “mas não fui eu”, “não fui eu”.
Agora, também como homenagem ao morto, faria tudo para que a igrejinha fosse construída às margens do rio, restando somente saber como providenciar o que fosse necessário, vez que já estava de viagem e não podia se atrasar mais tempo no lugar. A bem dizer, só estava ainda em Mormaço porque era a porta de entrada para a região onde iria visitar e prestar ajuda aos mais carentes.
O problema da prima foi resolvido num instante. Ao saber de quanto era o seu presente a pobre senhora quase desmaia, ficou sem acreditar, não sabia se sorria ou se chorava, até esqueceu o ocorrido com o padre. Contudo, chamou o filho para mostrar o cheque e este avistou somente um papel riscado, puxou-o da mão da mãe e rasgou no mesmo instante. Foi preciso providenciar outro cheque.
“Mas ouça bem o que vou dizer prima Codé. Tenha muito cuidado com esse cheque. Mais tarde mande abrir uma conta em seu nome no banco e deposite o cheque para ser descontado e o dinheiro ficar lá pra quando você precisar. É muito dinheiro, mas veja lá o que faz, até porque tudo acaba. Compre uma casinha melhor, uns móveis e vá sobrevivendo. Se tiver cuidado não vai lhe faltar nem a seu filho. E leve ele de vez em quando ao médico. Não esqueça”.
Passar pela praça começou a se transformar num transtorno desde que a notícia se espalhou. Como na igreja não cabia mais ninguém, as pessoas se aglomeravam em frente ou se espalhavam pelos canteiros. Desse modo, foi dificultoso para que a viúva e os seus dois fiéis acompanhantes, Carlinhos e Yula, chegassem aos portões do casarão do coronel.
Demundo Apogeu deu um grito dispensando o trabalho do empregado e veio ele próprio receber os convidados. Demonstrava contentamento com a chegada deles e em seguida fez um breve comentário sobre o passatempo do padre: “Pobre do homem, ainda moço demais, mas a mão dessa danada vai escolhendo quem ela quer levar e pronto. E não gosto nem de falar nessas coisas e creio que vocês já conhecem os motivos. Mas vamos lá pra varanda, por favor”.
E que casarão realmente majestoso, cheio de história, desde a arquitetura esmerada aos móveis antigos e utensílios que chegavam a brilhar nas inúmeras prateleiras de madeira de lei bem envelhecida e que brilhavam mais ainda pelo envernizamento. Amplos espaços, salas e salões cada um maior que o outro. E tudo somente para duas pessoas disse o coronel, pois ainda não tinha chamado a nova companheira para apresentar.
Enquanto os meninos apreciavam algumas fotografias de bois campeões nas paredes, ele puxou a viúva pelo braço num canto e confidenciou: “Não vamos entrar em detalhes aqui, mas esta que vou lhe apresentar agora não é minha verdadeira esposa não, mas um grande amor do passado e que somente agora tivemos a oportunidade de juntar os panos. Na verdade, ela é a mãe biológica do meu falecido filho, sobre o qual mais tarde falarei um pouquinho, mas que praticou um gesto muito bonito ao deixar que minha falecida esposa o criasse como filho. E fez muito bem, pois o nosso menino, até certo ponto, foi muito bem cuidado e não teve o problema dele ser criado com uma prostituta. Isso mesmo, e digo de boca cheia, conheci quenga a que hoje vive comigo e me apaixonei, mesmo sabendo da vida mundana que ela levava. E continuamos assim por toda vida, mesma ela quengando quando mais nova. Até pouco tempo era dona do melhor cabaré da cidade, mas somente como empresária das mocinhas. Por fim, com o falecimento do nosso filho, o destino achou de nos unir de vez. Mas agora vou chamar ela para apresentar e verá que doçura de pessoa aquela puta velha, no bom sentido, é claro”.
Dona Doranice, ao invés de se esperar ficar espantada e até ofendida pelas palavras do coronel, aceitou com gosto e sem maldade o que ouviu, ficou com ar de contentamento pela sinceridade demonstrada. Assim, estava mais para sorrir do que ficar ensimesmada.
Assim que a ex-madame Sofie apareceu foi uma festa aos olhos de todos. Sem enfeites no corpo e no vestir, primando pela simplicidade e bom gosto, parecia mais uma pessoa humanamente encantadora. E era. Os olhos de Doranice nunca falhavam. E por isso mesmo sabia quem levaria adiante a responsabilidade pelas obras da construção da igrejinha.
Contudo, antes mesmo que a viúva fizesse qualquer comentário nesse sentido, ela falou sorridente: “Não se preocupe com o que está imaginando, pois farei o possível para que o seu desejo se realize. Se abraçou essa causa com tanto afinco e devoção, não se preocupe que a igrejinha de São Pedrito será construída o mais brevemente possível”.
E foi o maior espanto entre todos, principalmente para a viúva, que não acreditava no que ouvia. Enfim, conseguiu se expressar: “Mas como você soube disto?”. “Seria melhor que não, mas vou contrariar os mistérios e contar”, emendou Sofie.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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