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quarta-feira, 9 de março de 2011

DESCONHECIDOS - 47 (Conto)

DESCONHECIDOS – 47

Rangel Alves da Costa*


O pescador João sabia que aquela região do rio era pouco visitada por causa das águas que já não suportavam embarcações de grande porte como há muitos anos atrás. Os pescadores mais antigos comentavam que aquelas beiradas eram verdadeiros portos de onde subia e descia tudo nas embarcações, desde o feirante ao comprador de animais e suas compras.
Canoas de tolda faziam percurso com a maior normalidade. Pessoas de cidades distantes deixavam de viajar pelas estradas para seguir pelo rio, conversando entre si sobre lendas e mistérios ribeirinhos e apreciando a abundância da paisagem, naquele curso lento e despreocupante. Num lado uma serra, no outro um cânion, mais adiante um pequeno rochedo numa paisagem que se estende e vai avançando pela mataria.
Contavam que o nego d’água, em noites de lua cheia, pulava das pedras e fazia barulho nas águas; a sereia gostava de namorar pescadores que saíam sozinhos com seus barcos e se este era jovem, bonito e forte, o amor se transformava em paixão e de vez em quando ela levava um para viver para sempre nas profundezas, no seu castelo de ossos e de fome de amor.
Ouviu certa vez de mestre Aquilino, um artesão construtor de rede de pescaria, que um caboclo ribeirinho, ao invés de ser encantado e levado pela sereia, fez com que esta se apaixonasse completamente por ele, e tal fato ocasionando estranhíssimas consequencias.
Segundo relatava o homem, tudo começou a acontecer quando o jovem pescador saiu ao entardecer para ver se conseguia algum peixe e foi avançando rio acima, alcançando os lugares de águas mais profundas e perigosas. Em dado momento, em meio a um verdadeiro redemoinho azul, se viu sem o controle da canoa e na certeza que ela seria despedaçada a qualquer instante.
O homem, sem ter outra opção, pulou nas águas e foi nadando com todas as forças para ver se alcançava algum rochedo sobressaindo no rio. Ergueu um pouco mais a cabeça e conseguia enxergar uma grande pedra adiante, se dirigindo todo esbaforido até lá.
Contudo, assim que ergueu o braço e procurou colocar a mão numa ponta de pedra, o que conseguiu segurar foi um rabo enorme de peixe, que de outra coisa não era senão de uma sereia, ali à sua espera tranquilamente, linda, imponente e maravilhosamente encantadora como toda sereia.
Sem ter saída, o pescador não quis nem saber quem ou o que estava lá e foi subindo na pedra até sair completamente da água. Tendo visto o rabo dela, sabia que não poderia de jeito algum olhar nos seus olhos nem deixar que ela lhe tocasse de frente.
Todo mundo por ali sabia que desse jeito, primeiro olhando dentro dos olhos e depois tocando na face, ela fazia o seu encantamento e a pessoa sairia totalmente de si, se entregando de amores por ela e a acompanhando onde fosse. Assim, quando ela mergulhava em direção às profundezas azuis o coitado do apaixonado a acompanharia para se entregar à mortal paixão.
Assim, ele ficou em pé, porém voltado para as águas, logo imaginando qual direção seguiria após outro mergulho. Sentiu atrás de si um leve canto, quase sussurro doce e apaixonante. Um sopro morno e arrepiante começou a passear pela sua nuca; algo levemente tocava suas costas, numa carícia inebriante.
Sentiu como se braços quisessem lhe abraçar, como se outro corpo quisesse lhe tomar. Então rapidamente lembrou que trazia no bolso da calça um pequeno espelho, desses que todo jovem gosta de carregar para estar se olhando e se penteando. Então colocou rapidamente a mão no bolso e de lá retirou o objeto, levando-o em seguida até a altura do rosto.
Pelo espelho, a sereia pôde ver aquele rosto tão belo e jovem e imediatamente quis tê-lo a todo custo. O rapaz sabia o que lhe aconteceria se não fosse aquele objeto, pois ou teria que fugir imediatamente ou seria totalmente tomado pela mulher das águas. Então deixou que ela visse o seu rosto e se encantasse e em seguida jogou o espelho com força para trás, nas águas bem atrás de onde ela estava.
Imediatamente ela deu um grito horripilante e mergulhou ainda de costas atrás do espelho, da face espelhada nele. Muito tempo depois, pescando sozinho em tarde avermelhada, eis que de repente ela surge nas águas toda sorridente e de braços abertos, chamando-o para um abraço, convidando-o para o amor.
E já esperando que isso ocorresse, ele pega outro espelho, se olha e joga-o nas águas distantes. E ela mergulha apaixonada. Assim, sempre que ele sai sozinho para pescar ela aparece, agora chorando aflita, pois quer sentir o seu corpo, mas sabe que terá de mergulhar novamente.
Segundo o mestre Aquilino, foi a única vez que uma sereia se viveu perdidamente, e até maltratada, por um pescador. Mas um dia, quando já estava velho e sem forças para pescar, uma noite a onda do rio foi lhe buscar e levou-o ao encontro do seu amor, bem lá nas profundezas das águas. Então ela ressuscitou o amado, deu-lhe o mesmo corpo jovial de antes e foram felizes para sempre. Ele já não tinha qualquer espelho como saída.
De vez em quando João se via pensando em histórias assim, ali mesmo em cima do rochedo, ao entardecer. E depois olhou mais para o alto e viu um passarinho que voava de uma forma estranha, pois vinha e voltava, vinha e voltava.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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