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quarta-feira, 23 de março de 2011

DESCONHECIDOS - 61 (Conto)

DESCONHECIDOS – 61

Rangel Alves da Costa*


A viúva demonstrou grande receptividade para com a jornalista, deixando Cristina à vontade para fazer o acompanhamento daquelas ações de caridade. Pediu, porém, que observasse e registrasse tudo direitinho porque mais tarde gostaria de discutir algumas coisas com ela. Disse que confiava na sua experiência de jornalista e acostumada a ver de perto dramas de todos os tipos. Daí sua opinião ser tão importante.
Mesmo que Dona Doranice quisesse estar à frente de tudo ao mesmo tempo, de vez em quando Carlinhos só faltava lhe dar uns puxões de orelhas. “Senta aí mulher de Deus, deixe que eu mando levar mais outra cesta de alimentos naquela casa”, “Não precisa ir até lá não que eu mesmo vou saber qual o doença do menino pra providenciar o médico e remédio”, “Se a senhora ao menos tentar pegar nessa caixa vai tomar umas palmadas, mas quem já se viu mulher mais teimosa!”.
Em muitas vilas, povoados, fazendas, lugarejos, logo quando chegavam Yula saía pelo meio do povo com um caderninho e aqui e ali fazia anotações, num verdadeiro diário de campo. Na verdade, eram dois caderninhos. Num ia anotando o que via que o povo estava mais precisando ou que chegava perto dele para pedir; no outro ia escrevendo suas impressões de viagem, descrevendo a vida daquela sociedade ainda tão estranha ao seu olhar. Procurava ser fiel ao máximo no registro do jeito de ser e do modo como vivia.
Tanto Carlinhos como Yula causavam os melhores elogios no coração materno da viúva. Gostava de vê-los ali ao seu lado interessados, felizes, contentes e brincalhões, mesmo sabendo a dor e o sofrimento experimentado por cada um diante dos quadros de miséria mais visivelmente alarmantes. Em Carlinhos sabia que o impacto era menor, vez que acostumado logo cedinho ao sofrimento dos abandonados.
Indagava se Yula apenas estranhava ou não compreendia se realmente aquilo estava existindo diante de si. Com certeza, até o instante em que foi levado por sua avó até a mansão da viúva, talvez muito pouco ou nada tivesse conhecimento sobre a realidade desse povo vivente nas distâncias agrestes de sol e sol. Agora era o menino se fazendo homem através da prova do olhar, do sentir, do ter que acreditar ainda que a indignação quisesse se impor.
Assim, após mais um dia de duro trabalho num desses lugarejos interioranos, onde o progresso se faz presente apenas em determinados comportamentos, a viúva olhou por entre a multidão se encontrava a jornalista Cristina e, não conseguindo avistá-la, pediu a Carlinhos que fosse procurá-la porque precisava conversar um pouco com a mesma. Já era o segundo dia que a moça acompanhava o trabalho da equipe e talvez já tivesse algumas considerações importantes a fazer.
Carlinhos sumiu e voltou correndo para dizer que ela estava numa casa mais adiante tentando fazer alguma coisa por uma família que se encontrava aos prantos e totalmente desesperada. “Mas o que houve meu Deus? Vamos depressa até lá”. E a viúva saiu apressada seguindo o menino e acompanhada de Yula, que também queria saber logo o que estava ocorrendo.
Assim que avistou a viúva, Cristina correu ao seu encontro dizendo: “Dona Doranice, minha filha, a senhora nem sabe o que acaba de acontecer com essa pobre mulher e seus cinco filhos. Rapazinho, por favor, leia aqui essa triste carta que essa pobre mulher acaba de receber, com mais de mês de atraso, enviada por uma parenta sua lá na metrópole de Lindo Horizonte”.
Então Yula levantou o papel de carta já molhado perto dos olhos e leu: “Querida sobrinha. Me adesculpe por não ter podido falar com você antes, pruque num tinha como. Mas se pegue com Deus pruque a notiça que vou dá num é boa não. Sebastião seu marido, que só falava em vortá praí e inté já tava arrumano um dinheirinho pra vortá, tem três dia que caiu dum andaime numa obra e morreu esbagaçado no chão. Num se sabe cuma mais a empresa já interrou ele num cimitero ninguém sabe adonde. Agora é só rezar pra Deus e cuidá dos seus filhinho. No fim do ano vou aí e vou ajudá no que puder. Meus pesame e força pra continuá lutando. Quano eu for vou levar umas boneca pras menina e uns carrinhos de prástico pros menino. De sua tia sofrida. Esmeralda”.
“Mas que tragédia, meu Deus. Onde está essa pobre família, vamos lá. Mais de mês e essa danada de notícia vem bater à porta da casa agora. Vamos lá todos juntos, por favor”, disse a viúva, visivelmente abalada e aflita.
Pleno desalento! Após uma porta de cortina uma família chorando a notícia da morte de um esposo e pai. Em meio a um cenário que se resumia a restos de quase tudo, e tudo pendurado caindo, jogado pelo chão, uma família envergonhada, baixando a cabeça e tentando esconder a face da pobreza e o sofrimento.
Soluçando baixinho, a mãe tinha ladeando o seu corpo magro e desnutrido os cinco filhinhos, parecendo uma escadinha, sendo três meninas e dois meninos. “Olá pessoal, sei bem porque estão assim. Tenham a certeza que todos nós estamos também muito tristes com o ocorrido. Mais de mês e só conseguiram receber a carta agora, mas é assim mesmo. Dessa vez os passos do sofrimento vinham muito devagar, e talvez porque estivessem esperando que eu chegasse aqui para acolher vocês nesse momento tão difícil. Por favor, ergam as cabeças e venham aqui perto de mim, pois quero dar um forte abraço em cada um e depois dizer uma coisa. Sei que é muito difícil, mas levantem as cabecinhas e venham...”. E Dona Doranice fazia de tudo para não deixar as lágrimas molhar as palavras.
A primeira a se aproximar foi a mais novinha de todas, ao menos no tamanho era a menor, e quando estava bem em frente à viúva levantou os olhos marejados e perguntou: “Papai não vai mais me dá biscoito. A senhora me dá um biscoito?”.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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