SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 24 de março de 2011

NOITES MOLHADAS (Crônica)

NOITES MOLHADAS

Rangel Alves da Costa*


Há instantes saí no quintal, olhei para cima, abri os braços e me deixei levemente molhar por uma chuvinha fina que hoje cismou de cair sem cessar.
Há muito tempo não chovia uma gota de água sequer. O mundo parecia pegando fogo, tudo escaldando, fazendo os corpos agonizarem com uma sensação suada, fétida, pegajosa.
Nunca confiei em previsões meteorológicas, apenas me bastando em adivinhar as chuvas como bom sertanejo que sou: olhando a barra, sentindo o comportamento das folhagens, vendo os sinais das noites e madrugadas.
Como está quente demais, deito e adormeço numa área verde descoberta por onde entram a lua e os sonhos. Mas na madrugada entrou também um pingo de chuva, eu senti.
Daí em diante nem passou a chover forte nem o tempo abriu mais de vez durante todo o dia. Uma chuvinha aqui e outra ali, verdade é que o clima melhorou e as esperanças de dias melhores parecem também surgir.
Gosto quando chove porque a vida se banha, o mundo fica mais sentimental, as pessoas ficam docemente mais entristecidas e os pingos que caem fazem acender todos os tipos de chamas íntimas.
Surge então uma tristeza diferente, uma angústia que não é dolorosa, uma sensação de abandono e solidão que nos faz mais caminhantes à nossa própria procura. Dor que não doi, saudade de tudo, querer tudo de volta e ao redor, querer se molhar novamente...
A noite é mais negra quando chove. Os astros respeitam a imensidão que se lava, os pingos que lentamente vão caindo para alimentar a vida, trazer recordações, fustigar lembranças, lembrar ainda mais da solidão por causa do friozinho bom.
Na sala, no quarto, na varanda, em pé diante da porta aberta, encostado na janela molhada, o olhar busca tudo ao leve som que muitas vezes nem se ouve. É a chuvinha que cai mansa lá fora e faz um barulho ensurdecer por dentro e atiça e aguça tudo que for sentimento.
Olhando a vidraça molhada, tudo escurecido e embaçado lá fora, talvez caia bem um cálice de vinho, Strauss ajudando também a molhar os olhos, um corpo que valsa sem sair do lugar. E adiante o livro marcado com a folha seca, o diário de qualquer dor, uma velha máquina de escrever que quer ser tocada.
Não é Lobão dizendo que chove lá fora e aqui tá tão vazio; não é Jorge Ben dizendo que chove chuva e chove sem parar; não é Jobim lembrando que são as águas de março; não é Demetrius pedindo que chuva traga o meu benzinho. É o silêncio que canta e dança essa melodia única das noites molhadas, das noites chuvosas, dessas noites lavadas.
E saio novamente de braços abertos, cabeça erguida ao encontro dos pingos e encontro ainda uma réstia de lua escondida entre as nuvens. E é essa tênue luz que quase não aparece que pinta o verdadeiro cenário das noites chuvosas.
Basta olhar a rua e enxergar o brilho das pedras molhadas, do asfalto mais escurecido, das paredes que vão derramando suas cores ainda mais fortemente. É noite, mas a frágil luz do luar consegue impregnar cores novas, lavadas, molhadas, escorregadias, em tudo que se derrama noturnamente pela vida.
E eu queria que essa chuva tão leve caísse mais forte, mais enxurrada, mais trovoada. Nunca mais tomei banho de bica, experimentei caindo sobre a minha cabeça as águas velozes escorrendo pelas calhas. Quantos adultos se fazem criança e renascem em cada banho que se toma assim pelos quintais e calçadas?
Sei que ainda está chovendo. Um pouquinho quase nada, mas ainda está. Vou até lá novamente e não tem nada se quando eu chegar o tempo já tenha mudado, a chuva cessado. É noite e estou com saudade e os meus olhos me acompanham com todas as nuvens carregadas que possuem.





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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