SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 10 de março de 2011

ESSE MEU GRANDE AMOR (Crônica)

ESSE MEU GRANDE AMOR

Rangel Alves da Costa*


Quando saio em viagem para visitar meu sertão, logo me divido em dois para ter coragem de enfrentar o que encontrarei pela frente.
Um se veste de mim mesmo, cheio de expectativa e aflição, tomado pelas lembranças dos tempos idos e repleto de incertezas pelo que um dia deixei e não sei se novamente encontrarei.
Outro se reveste de olhar de pedra, de corpo sem sentimentos, de passos movidos à vontade de nunca parar. Apenas vai, sem querer ir nem chegar, já pressupondo as dores e desilusões que irá encontrar.
Aquele outro, sertanejo autêntico de algibeira e gibão, chapéu de couro e alforje de caçador, vive distante, porém parece que nunca saiu de lá. È o filho que não esquece a família, o berço da terra e a mão da felicidade no lugar de pureza.
Este, o disfarçado dele mesmo somente para não sofrer mais, certamente nem saberá mais em qual porta bater, qual amigo falar, em qual pé de pau se amoitará para um pelejar conversadeiro.
Infelizmente este sabe que o sertão só continua com o nome de tal. Aquilo que se honrava e enchia de orgulho os seus filhos por ser tão sertão, perdeu-se num tempo de modismos onde o novo, espantando o autêntico só fez brotar da mesma semente destruidora da cidade grande.
A semente do meu sertão era outra, lembro muito bem. Na terra árida e ressequida pelo sol o que se espalhava para colher depois era carregado de seriedade, de honradez, de força para sobreviver e infinito esforço para subsistir. A colheita era pouquinha, mas como rendia na palma da mão do sertão.
Aos poucos - e disso também sei muito bem -, foram revirando terra e história e em cada canteiro matuto foi nascendo outro fruto que só alimenta a destruição. Encontraram a cancela aberta e sem pedir licença foram trazendo a cidade para o interior, foram importando os modismos, foram transformando vida em aflição.
Lembro como se fosse hoje, e não faz muito tempo, que as missas de domingo era festa e reunião, eram vestidos floridos de chita enfeitando caipirinhas bonitas, eram matutos de brilhantina de olho em cada menina, era o padre dizendo que missa era lugar de fervor religioso e não de encontro amoroso.
Cavalo enfeitado tinha demais, pois cavalhada era festança que não faltava; pega-de-boi, vaquejada, aboio e toada formavam a síntese do sertão do vaqueiro, do gado e do cavalo. E nas quermesses tinha até maçã do amor para colorir a boca da moça bela do lugar. Um dia enjoou da maçã e só queria receber uma flor. Impossível se o jardim era ela.
As calçadas eram das cadeiras de balanço, das amigas conversando sobre a vida alheia, da molecada pequenina se estender na brincadeira. Nos quintais a farmácia completa, o mastruz e a hortelã, mais adiante os bichos ciscando e o cheiro forte do chiqueiro lá pras bandas do riachinho.
Os meninos gostavam mesmo era quando o riacho enchia. O dia todinho os neguinhos d’água dando batim, apostando quem tinha mais fôlego, esperando que o passarinho caísse na arapuca colocada na catingueira da beirada. Depois, se desse tempo ia brincar com brinquedo de menino sertanejo. Ele de bola de gude, de cavalo de pau, de fazendeiro com ponta de vaca; ela com boneca de pano, com a casinha de boneca, com um espelhinho que nunca era esquecido.
Depois disso se fazia o homem e a mulher, o sertanejo que se tinha e que felizmente ainda resta de prova. Daí em diante a luta pela sobrevivência, a esperança que a seca não maltrate tanto, o agradecimento a Deus por muito ter e ter demais, pois tem um cuscuz pra filharada, tem feijão com farinha meio-dia. Carne nem sempre tem, mas qualquer dia terá.
Por isso é que o meu outro chora. E se despedaça em pranto ao chegar por lá e encontrar um sertão irreconhecível, com o que há de pior se alastrando sem parar. É a prostituição desenfreada, a sem-vergonhice à solta, a violência barata, a violência bem paga, as drogas, esse tal de crack, esse tal de morte.
Quando esses eu divididos se reencontram em qualquer lugar, um continua chorando, pois sertanejo autêntico, enquanto o outro entristece de baixar cabeça, pois sertanejo também. E nessa lágrima entristecida a certeza do valor do sertão, o amor pela sua história, a revolta pela devassidão.
Menino de lá não diz mais nem que é sertanejo. Mas deixe, deixe esse orgulho pra mim, que bem sei dividir com quem acorda ainda na madrugada escurecida para conversar com a natureza.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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