DESCONHECIDOS – 41
Rangel Alves da Costa*
Como de costume, antes das seis horas a viúva já estava de pé. Não iria incomodar os outros, que dormissem até quando bem entendessem, ao menos nesta manhã seguinte à viagem tão cansativa.
Não demorou muito e já estava passeando sozinha, dando uma voltinha matinal nas ruas ao redor da praça. Tudo ali era praticamente comércio, vazio e solitário naquele horário. Andou um pouco mais, sempre com muito cuidado para saber onde estava, e chegou a ruazinhas verdadeiramente interioranas.
No seu olhar contemplativo e saudoso viu a velhinha sentada na porta, a mulher passando com um cesto de roupas na cabeça, outra varrendo a calçada, vizinhas colocando as fofocas em dia logo cedinho, viu uma menina correndo e um menino caindo. E viu também o trabalhador que saía de casa com enxada no ombro, o vendedor de leite com baldes em cima de uma carroça, um moço de chapéu de couro passando montado a cavalo, um carro de boi gemendo, um cachorro, dois cachorros e mais.
Diante dela a doce e pacata vida interiorana ainda existente, ainda não totalmente tomada pelos modismos cotidianos da cidade grande. Dava vontade de conversar com cada uma daquelas pessoas, porém precisava voltar, necessitava retornar para não assustar as pessoas que a procurassem e não encontrassem.
Bastou tomar o caminho de volta e já encontrou Carlinhos andando à sua procura. “Mas Dona Doranice, logo cedinho e a senhora já deixa a gente em polvorosa. Tava num soninho bom e uma das suas secretárias me balança todo mandando eu vim lhe procurar porque tinha desaparecido”. Disse o garoto sorrindo.
“Mas não se preocupe meu filho. Essa hora lá em Nova Paulo estava caminhando pelos jardins, e aqui caminho pelas ruas e calçadas. E é tudo muito bonito e maravilhoso. É realmente encantadora a vida no interior”, falou a viúva, ao que Carlinhos ajuntou: “Sei disso, também achei muito bonita essa manhã. Se tivesse um rio mais pertinho hein? Não tinha coisa melhor do que banho de rio nessa hora. Mas vamos tomar café que a senhora tem muitos compromissos mais tarde. A senhora pensa em partir daqui ainda hoje?”.
“Ora, meu filho, a gente nunca sabe. Pelo que eu sei só tenho três compromissos marcados e todos pela manhã, com o padre na igreja, com minha prima Codé e depois com o coronel, pois decidi visitá-lo sim. Esse homem deve saber de coisas de duvidar. Deve ter conquistado toda a riqueza que tem hoje com muita valentia e também covardia, mas isso faz parte do mundo da esperteza desse povo agreste. Infelizmente, por aqui, e não faz muito tempo sei disso, tudo era na base da tocaia, da violência, da vingança, do botar o outro pra correr. Você ainda é muito novo pra saber dessas histórias, mas muita riqueza foi conseguida pela morte do mais fraco, espantando a família da terra para se apossar como se dono fosse. Mas nem tudo foi assim, pois temos que valorizar e reconhecer o trabalho também. Mas isso veremos logo mais, acaso o coronel queira falar ao menos metade de suas verdades. Vamos, vamos lá que quero comer outro prato de coalhada fresquinha”.
Faltando uns dez minutos para o horário combinado, a viúva, acompanhada de Carlinhos e Yula, já estava defronte à igreja. De repente sua prima Codé juntamente com seu filho demente desponta na porta principal em correria e aos gritos: “O padre morreu, o padre morreu. Beata Salustina acabou de encontrar o homem morto deitado na cama da sacristia. Quem sabe tocar o sino, venham tocar o sino pelo amor de Deus!”.
“Calma prima, se acalme senão você tem um ataque. Vamos entrar meninos para ver o que foi que realmente houve”, disse Doranice, tentando andar mais apressada nas pernas que lhe faltavam. Se o tal fato fosse verdade seria uma lástima, uma verdadeira tragédia para os fiéis. O que teria acontecido com um homem ainda tão jovem, mostrando brilho no olhar e parecendo vendendo saúde, como se apresentava ontem à noite? Ia matutando essas coisas enquanto cruzava a porta da igreja.
Nesse instante, diante dos gritos de Dona Cordélia e principalmente de seu filho, que corria de um lado pra outro anunciando o acontecido, as pessoas que estavam na praça e nos arredores começaram a se bandear em direção à igreja e começou um verdadeiro deus-nos-acuda.
Nem bem havia sido feita ainda a confirmação oficial e beatas se lamuriavam e lamentavam num barulho só, enquanto outras desmaiavam pelos cantos e por cima dos bancos da igreja. A Beata Salustina, que primeiro testemunhou o reverendo falecido, de olhos esbugalhados e parecendo que ia espumar pela boca, nem conseguia mais falar.
E já voltando de dentro da sacristia, surgiu Yula, todo tremendo e mais embranquecido ainda, gritando e pedindo silêncio ao povo desesperado para, enfim, anunciar: “Amigos fiéis, o seu padre está morto. Não se sabe o que poderá ter causado falecimento do bom homem, mas a verdade é que ele jaz deitado sem vida em sua cama, como se estivesse dormindo de olhos abertos”.
Ao lado da cama, procurando todas as forças do mundo para se manter, Dona Doranice procurava entender aquela morte. O homem parecia ter deitado tranquilamente, a não ser pelo fato de que sua mão se fechava sobre uma caneta e um papel.
E quando a viúva cuidadosamente abriu o papel pôde ler: “Que sequem as águas do rio antes que cheguem e se encontrem o menino e o profeta, a esperança e a realidade”. As águas do rio, o menino e o profeta. O que significará isto? Ficou ainda mais tristemente pensativa.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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