DESCONHECIDOS – 53
Rangel Alves da Costa*
João pescador passou o resto da noite mais olhando de longe para Soniele do que mesmo prestando atenção no velório ou no que os outros diziam ou conversavam. Via uma coisa diferente, ao mesmo tempo instigante e atraente naquela mocinha, que o deixava tão intrigado consigo mesmo.
Não era nada de paixão repentina, amor ou desejo à primeira vista, nada disso, mas algo que naqueles momentos não sabia explicar. Parecia muito com sua falecida esposa, menina nova, bonita, um tipo sertanejo que encanta pela beleza singeleza e pela simplicidade.
Ficou feliz quando ela lhe veio trazer uma xícara de café de madrugada. Uma mão estendida e um sorriso, e depois uma só pergunta por parte de João: “Me adesculpe, mas a mocinha é novata por aqui, não é?”. Ao que ela respondeu: “Sou novata em todo lugar, até porque não fico muito tempo em lugar nenhum. Mas gostei desse lugar, da vida simples de vocês e dessa natureza encantadora”.
Foram as únicas palavras durante aquele momento e por todo o restante do tempo que ficaram por ali, até o enterro de Climério, que estava marcado para acontecer pela manhã no pequeno cemitério dos pescadores, um descampado minúsculo e marcado com alguns cruzes, localizado lá perto de onde o profeta havia dormido.
Por falar em Aristeu, nem bem o dia clareou e ele já estava em pé seguindo em direção ao rio para o banho matinal e do dia inteiro. O pássaro observou quando ele saiu e fechou os olhos por um dez minutos, somente abrindo depois desse breve descanso e já com os mesmos tomados por vermelhidão de fogo mais intensa ainda. Depois disso levantou voo sem que o profeta lhe avistasse, rumando ao desconhecido e com a certeza de que voltaria a qualquer instante, não se sabendo bem a hora e o dia.
O que o pássaro de fogo queria ver e sentir já tinha conseguido, agora era esperar o momento certo para a ação. E enquanto tomava banho, o profeta de repente tomou um susto porque achou que tinha avistado um passarinho morto boiando sobre as águas e com a mesma aparência daquele seu guia. Mas nem deu tempo de nadar até lá, eis que o vulto desapareceu nas águas novamente.
Um pouco antes das onze horas da manhã, com o sol já bastante alto e um calor insuportável por toda aquela região ribeirinha, os amigos saíram em cortejo carregando o caixão de tábuas com o corpo do pescador. Umas vinte pessoas apenas, entre homens e mulheres, todos entristecidos com aquele adeus e elas entoando incelenças de despedida, que são rezas próprias para a ocasião.
“Uma incelença que é pra ele
Uma incelença que é pra ele
Mãe de Deus, Mãe de Deus
Oh! Mãe de Deus rogai a Deus por ele
Oh! Mãe de Deus rogai a Deus por ele
Duas incelenças que é pra ele
Duas incelenças que é pra ele
Mãe de Deus, Mãe de Deus
Oh! Mãe de Deus rogai a Deus por ele
Oh! Mãe de Deus rogai a Deus por ele
Uma incelença minha Virgem do Rosário
Que do vosso ventre se abriu num sacrário
Sacrários abertos, saiu o Senhor fora
Receber um’alma que vai para a glória
Duas incelenças minha Virgem do Rosário
Que do vosso ventre se abriu num sacrário
Sacrários abertos, saiu o Senhor fora
Receber um’alma que vai para a glória
Três incelenças, minha Virgem do Rosário…”
De passo a passo João pescador lançava um olhar para a mocinha Soniele que acompanhava o cortejo se protegendo com uma sobrinha. Com sua cor de jambo, debaixo do sol e no calor as faces ficavam avermelhadas e da cor da terra, com o suor e o cansaço no rosto não apagando tanta beleza. Vixe Maria, mas agora é que parece mais com minha falecida esposa quando tava na beira do rio me esperando encostar o barco! Dizia João no seu silêncio gritante.
A cova já estava aberta e não durou muito que os sete palmos de terra encobrissem de vez o homem e sua história. Alguém jogou uma flor do campo por cima e pronto, todas as despedidas já estavam feitas e agora era rezar pra sua alma ser bem recebida nas alturas, se assim merecia aquele pobre pecador de quase nada.
Quando já iam retornando, Soniele avistou uma figura esquisita meio se escondendo por trás de um pé de pau. Então ela tocou no braço de João e mandou que ele também olhasse naquela direção onde o profeta Aristeu acompanhava tudo sem querer ser visto. “Conhece aquela pessoa ali, mais parecendo um louco?”, perguntou ela.
“Não, mas parece que dei de cara com ele ontem lá perto do meu barraco, logo depois que o finado Climério saiu de lá no seu barco. É estranho mesmo. E o que será que esse homem todo esfarrapado e esquisito anda fazendo por aqui?”.
Então ela desviou o olhar para o caminho adiante e foi dizendo: “Também não conheço não. Mas contra o desconhecido, para o bem ou para o mal, só nos resta nos benzer”. E fez o sinal da cruz.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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