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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 28 de março de 2011

UM VELHO E UMA VELHA (Crônica)

UM VELHO E UMA VELHA

Rangel Alves da Costa*


Seu Julião mora na rua da frente, sem gostar de sair de casa, muito menos para andar pela rua de trás, que acha sombria demais e esquisita com aquelas árvores centenárias e imensas quase se deitando sobre as casas.
Dona Júlia mora na rua de trás, também sem apreciar muito sair de casa para caminhar por aí, principalmente quando se trata da rua da frente, que segundo ela possui casas que parecem todas iguais, recuadas e com um murinho na frente, e talvez com moradores todos iguais também.
Se não fosse a rua do meio, as ruas da frente e de trás seriam paralelas, porém com algumas diferenças na disposição de suas casas e nas paisagens. Uma é apenas triste, a rua da frente, enquanto a outra, a de trás, é muito entristecida mesmo. Se uma é a lágrima, a outra é o choro.
O que não são diferentes são os seus dois mais velhos moradores. Tanto Seu Julião como Dona Júlia são pessoas de mais de oitenta anos, porém lúcidos feito adolescentes.
Brincalhões de não acabar mais, entretanto escondendo muito naqueles corpos envelhecidos, nas faces de tantos ventos sobre as janelas e olhos que já viajaram o mundo nas recordações, angústias e tristezas de não acabar.
Sentados ao entardecer nas suas cadeiras de balanço, só mesmo Deus para saber o que passa por aquelas cabeças. De repente um sorriso, uma lágrima que vem escorrendo lentamente, uma palavra sozinha e o olhar sempre adiante da janela tentando enxergar as paisagens e os momentos de um passado distante, de um mundo vivido e já ido.
Coincidentemente os dois são solteiros. Contudo, não se trata aqui de fazer o acaso juntar os dois num encontro para que o destino aplaque os sofrimentos da velhice. Não.
Cada um vive sua vida, sua solidão, carências e desejos, e assim viverá até que a morte estenda a mão educadamente. Ao menos é isso que se espera para dois velhinhos que não fazem mal a ninguém.
Ora, se os dois, já nessa idade e continuam solteiros e morando sozinhos, foi porque o destino achou melhor assim. E aqui não se trata de nenhum conto de fadas para num passe de mágica tudo mudar e eles passarem a viver felizes para sempre. Que se cumpra então o destino da solidão. E até porque os dois são os maiores culpados por estarem assim até hoje.
Culpados porque ninguém nunca mais amou na vida do que Seu Julião a Dona Julião e Dona Júlia a Seu Julião. Isso mesmo, dois namorados de antigamente que agora viviam pertinho e tão distantes.
Era amor realmente recíproco na mais bela imensidão dos apaixonados. Namorados desde criancinhas, quem os visse mais tarde até perguntava se já haviam casado. E realmente quase casam.
Já adultos e cada vez mais apaixonados, planejaram o casamento como se planeja o nascimento de um filho. Pensaram em tudo, começaram a organizar tudo nos menores detalhes, mas logo começou a mudar e a dificultar os planos quando chegou o momento de escolher o endereço da casa onde passariam a morar.
Os pais presentearam os pombinhos com uma casa na rua do meio, porém não teve jeito. Ele só aceitava casar se fosse morar numa casa na rua da frente, enquanto ela bateu o pé e disse que só diria sim ao padre se fosse para morar numa casa na rua de trás. E assim o impasse foi criado e gerou as consequencias que se vê até hoje.
Não chegando a qualquer acordo, até mesmo com a intervenção do padre, o casamento foi adiado para sempre. Desfeito o relacionamento, cada um foi morar sozinho, de modo a demonstrar que era mais forte e não estava nem aí para o outro. Ele na rua da frente e ela na rua de trás.
Uma amiga dos dois morava na rua do meio e se incumbia de falar mal de um para o outro e assim por diante. Mas verdade é que cada um passou a odiar a rua do outro e a fazer promessa para jamais colocar os pés no lugar.
Mas quando já era entardecer, de ruas desertas e vento soprando as folhagens, cada um saía de sua casinha e ia pé ante pé até a esquina da rua do outro somente para olhar as janelas por alguns instantes. Assim, no mesmo horário, Seu Julião olhava por uma ponta de rua, enquanto Dona Júlia ficava quase que escondida na ponta da outra rua.
Só que um dia, talvez pela idade já avançada demais, os dois caminharam na mesma direção. Ao se encontrarem no caminho, sem a exata noção do que estavam fazendo, os dois cordialmente se cumprimentaram.
“Boa tarde, Seu Julião”, “Boa tarde, Dona Júlia”. Dois passos adiante e já estavam pensando como puderam falar o nome de uma pessoa que não conhecia. Então pararam e olharam pra trás. E se reconheceram.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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