SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 31 de outubro de 2018

REVELAÇÕES AO ENTARDECER



*Rangel Alves da Costa


Estou desconhecendo a mim mesmo. Nunca mais caminhei pelas estradas e ruas, de pés descalços, pelo prazer de pisar na terra, sentir o calor do chão e estar mais aproximado do mais puro ventre.
Estou entristecido comigo mesmo. Nunca mais abri a janela para esperar borboletas, para a chegada de colibris nem pássaros do amanhecer. E sei que agora me falta aquele sorriso da flor e o beijo da brisa do amanhecer.
Estou me sentindo desumanizado demais. Chego a me perguntar se não perdi a sensibilidade, se não desacalantei o amor pelas coisas simples, se não reneguei o prazer pela jabuticaba e a sapoti de quintal.  E tão doce era beijar a boca do araçá.
Estou me distanciando de mim mesmo. Temo ter deixado ir embora a criança que sempre esteve em mim, o menino traquina que sempre gostou de brincar e de sorrir. Temo que até a memória e as doces lembranças e nostalgias tenham se distanciado de mim.
Estou me tornando cada vez mais insensível, e eis o medo maior que dá. Não desejo a lágrima petrificada nem o soluço preso, não quero olhos sem brilho nem coração que não pulse mais perante as situações de vida. E tudo parece simplesmente acontecer.
Estou sem tempo para as coisas boas da vida, estou sem encorajamento para reencontrar as coisas boas da vida. Nunca mais sentei na pedra, nunca mais conversei com a pedra, nunca mais deitei no colo da pedra e sonhei com um jardim florido e perfumado.
Estou envelhecendo demais sem ainda ter alcançado os portais da velhice. Imagino que os espelhos vão me negar o sorriso, penso que os espelhos vão acrescentar minhas rugas, imagino que de repente já serei outro, triste e alquebrado, num corpo apenas cansado.
Estou sem tempo de fazer o que sempre fiz mesmo sem ter tempo. Sempre encontrei um instante para subir à montanha, para sentar à beira das águas, para me aquecer com as brasas do pôr do sol. E sequer tenho tido tempo de olhar o horizonte e imaginar o que está além e mais além.
Estou sem tempo de pensar nas coisas boas da vida, de trazer ao pensamento o que sempre me confortou, ainda que com saudades. É como se o sabor do café torrado já não mais esteja na minha boca, é como se o perfume do café na chaleira já não estivesse ao meu alcance.
Estou sem auroras e entardeceres que realmente sejam auroras e entardeceres. Não adianta apenas acordar, levantar e caminhar pelo quarto, sem que pule a janela e vá logo beijar a primeira luz e o primeiro sol. Não adianta chegar ao fim da tarde e perante o pôr do sol apenas fingir que o avista.
Estou sem tempo para mim, sem tempo para ser eu mesmo, sem tempo para fazer o que gosto e o que me faz bem. Preciso conversar com o vizinho, falar com as pessoas que passem adiante, sentar na calçada e conversar sozinho. Preciso jogar pedrinhas no meio do nada e riscar o chão com uma varinha qualquer.
Preciso chupar picolé de graviola, de coco e mangaba. Preciso pedir um algodão doce e uma maçã do amor. Preciso de pipoca colorida e de cocada de rua. Preciso piscar o olho pra menina bonita que passa de flor vermelha no cabelo. Preciso beijar a palma da mão e depois lançar o beijar em qualquer direção.
Preciso riscar o tronco da madeira e nele desenhar coração. Preciso escrever versos rimando amor e bilhetinhos com letras miúdas e implorando ao menos um olhar. Preciso ler um livro do começo ao fim e depois reescrever o mesmo livro do fim ao começo. Preciso abrir a janela. Preciso abrir a porta.
Preciso também de um sorriso e de um espelho que não negue as verdades, mas que não doa tanto nas suas verdades.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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