*Rangel Alves da Costa
Idos de calçadas e tempos de saudade. O calor
de agora, noutros tempos era refrescado do lado de fora da casa, nas calçadas.
Banco de madeira, tamborete de três ou quatro pernas, cadeira de balanço, uma
cadeira qualquer. Ou mesmo sentar ao chão para receber brisa boa. Quando uma
esteira era deitada no cimento, logo o adormecimento chegava naquelas tardes
fagueiras.
Portas batendo ao vento, folhagens sendo
trazidas pelos ares, canções chegadas pelos zunidos dos horizontes. Aqui e
acolá a poeira e o pó, mas tudo sem relevância ante o sossego daquelas horas
boas do dia. Depois da luta, do corpo afadigado, nada melhor que uma caneca d’água
para depois e se espalhar pela calçada, num balançar da cadeira ou no assento
tomando em qualquer, desde que o sombreado já tenha chegado e os sopros venham
açoitando sem pressa.
Mas tudo assim noutros tempos, num passado
onde a paz ainda reinava nas cidades, nas casas e nas calçadas. A violência de
hoje impede até mesmo que as pessoas sentem nas suas calçadas. Até mesmo na
porta de casa ou da vizinhança, corre-se o risco de ser atormentado pela
marginalidade que está por todo lugar.
Mas ainda assim muitas pessoas não desapartam
de jeito nenhum de suas calçadas. Principalmente nas cidades interioranas, as
portas de casa são como locais de alívio e repouso depois do trabalho do dia.
Depois que o sol começa a baixar e qualquer fresca começa a soprar, então as
cadeiras vão sendo arrastadas.
Cenas tão pitorescas como de feições
interioranas. Certamente que as tardes e as bocas da noite seriam muito mais
vazias e entristecidas se não houvesse as cadeiras pelas calçadas e pessoas conversando
a palavra da hora. Qualquer conversa mesmo, desde a mocinha buchada que passa
aos livros abertos dos velhos tempos.
As calçadas interioranas são os
confessionários, os locais para debulhar angústias, os assentos para saudades e
recordações. As cadeiras espalhadas pelas calçadas são como marcos de vidas que
se mostram presentes naqueles instantes de todo dia. As pessoas que sentam nas
cadeiras das calçadas, ou mesmo nos seus cimentos, são aquelas mesmas de tantas
histórias e tantas lutas e que de repente ali se achegam para um instante de
proseado.
Calçadas onde o tempo já tomou assento em
outras vidas. Calçadas onde outras cadeiras já embalaram gerações inteiras.
Calçadas onde as cadeiras também balançam sozinhas. Sim, sozinhas se embalam
por que as ausências chamam à memória a mesma presença. Por isso que não raro
imaginar que pessoas já partidas ainda tomam assento nas suas cadeiras ao
chegar o entardecer.
Mas também calçadas onde não cabem somente as
palavras, as cantigas, as recordações, as fofocas, as saudades, as palavras
fáceis, os comentários sobre os acontecidos e os acontecentes. Avistam-se mãos
com dedais e agulhas e panos. Enxergam-se cestas de feijão sendo debulhados. As
bordadeiras estendem suas almofadas e logos os bilros começam a tilintar no
percurso da marcação do bordado. O artesão vai dando forma e prumo ao santo de
madeira ou ao seu barquinho de um saudoso rio.
E as calçadas das tardes sertanejas, das
tardes matutas, nunca estão vazias. Mesmo sem nenhuma cadeira ali colocada, mesmo
sem qualquer almofada jogada num canto, mesmo sem qualquer objeto esquecido por
cima dela, ainda assim muito será avistado. Aquelas presenças que não saem da
memória, as cocadas e os doces por cima dos umbrais das janelas, as palavras
que coam como se saídas de vozes que ali deveriam estar presentes.
E quanta sabedoria surgida em cada calçada.
Outro dia, esperei Seu João Capoeira sair à porta e sentar na sua cadeira na
calçada e depois abrir o seu precioso de vida. De vez em quanto passo em frente
à calçada de Neném de Quininha e ela está sentadinha no mesmo lugarzinho de
todo entardecer. Reencontrei Dona Mariá se refrescando na sua calçada e sei
muito bem o quanto dali eu ouviria acaso tivesse tempo para alongar o proseado.
É numa calçada que ainda encontro a melhor
cocada do mundo. E agora doce de leite também. Na calçada de Naní, por cima de
uma mesinha, o sagrado doce sertanejo. Difícil contentar apenas com uma porção,
sempre se deseja mais um tiquinho. Mas na mesma calçada as amigas conversando,
os proseados de cada dia. Era também ali ao lado que Dona Arací sentava com sua
almofada de bilros e passava a manejar sua arte tão bela.
E assim as calçadas se estendem às margens
das ruas. Debaixo do sol quente é como sequer houvesse calçada. As portas fechadas
é como se escondessem as calçadas. Mas basta que chegue o entardecer ou
anoitecer para que tudo se transforme. As calçadas ganham vida e os livros do
passado e presente vão sendo abertos nas cadeiras e nas pessoas. Não mais como
antigamente, mas as calçadas ainda guardam consigo as histórias do lugar.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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