*Rangel Alves da Costa
Cornélio Tesourinha, que ainda hoje
autoproclama-se o mais afamado de todos os coiteiros que no passado serviram ao
Capitão Lampião e seu bando, de vez em quando vem com umas histórias que sequer
me aproximo para ouvir. Evito a todo custo os seus tão conhecidos
deslavamentos. Quem já se viu tanta mentira assim, e logo num homem já na curva
dos cem?
O homem mente tanto que dá engasgo só de
ouvir pelos outros. E o pior que ainda tem um monte de gente que vai à procura
do mentiroso para se deleitar com suas conversas sem pé nem cabeça, com seus
embustes de fazer estátua acordar e correr. Mas bem feito. Como se pode
acreditar num homem que diz que já foi casado com uma raposa, que tem um filho
guaxinim, que já morreu e foi mandado de volta? Só se foi pra continuar
mentindo muito mais!
Ainda vem um cabra me perguntar se podia ser
verdade a história contada pelo mentiroso e dando conta de que no tempo do
cangaço o bando de Lampião tinha do bom e do melhor, desde telefone celular a
água gelada de geladeira no coito. E também televisão e forno micro-ondas, além
de outros utensílios de alta tecnologia.
Interessei-me pelo tamanho da mentira e
arribei apressado na direção da casa do lorotista, ainda que com a certeza de
que avermelharia de raiva. Chegando lá, como se tivesse tomado um remédio para
evitar o pior, comecei a fazer perguntas e mais perguntas. Eu só faltava estrebuchar
perante tanta mentira, mas ele nem aí. Sobre o tal celular (e também sobre a
informática cangacista), o desavergonhado contou assim, tim-tim por tim-tim:
“Celular mesmo só tinha Lampião, e mandado de
presente pelo Coronel Veriano das Flores, lá da região do Quiproquó. O problema
é que o telefone do Capitão deu problema logo na tardezinha da véspera daquela
matança em Angico. A bateria descarregou e o fio, que era puxado de Piranhas,
do outro lado do rio, talvez tivesse sido tirado da tomada, e ninguém sabe por
quem. Ou sabe, mas nunca quis dizer. Eu sei quem foi, e depois eu digo.
Na verdade, nada teria acontecido daquele
jeito se o telefone de Lampião tivesse bom. Com certeza, gente da própria
volante, e gente graúda, tinha telefonado pra ele e avisado pra se retirar. Mas
era assim mesmo que se fazia. Eu mesmo já presenciei o Capitão marcando jogo de
carteado pelo celular, e com gente graúda da volante. Enquanto pensavam que
tava caçando cangaceiro, tava mesmo era jogando buraco, relancinho e três-sete,
debaixo dum pé de umbuzeiro. Lampião era bom de jogo e nunca perdia. Também
nunca aceitava o dinheiro ganho. Pelo contrário, dava ao graúdo da volante um
negocinho por fora.
Mas a verdade é que naquela tardezinha do dia
27 o celular ficou totalmente descarregado. Quem também não gostou da falta de
energia foi Maria Bonita, acostumada demais a tomar água quase congelada da
geladeira que tinha no coito. Geladeira novinha e mandada de presente por Mané
Belarmino, um fazendeirão que naquele tempo existia pelas bandas do Poço
Redondo.
Maria Bonita só gostava do bom e do melhor.
Todo dia se aporrinhava por que a televisão dela era a pilha. Certa feita, ela disse
a Lampião que ou ele arranjava uma televisão bem grande, dessas fininhas de
parede, ou ela ia assistir filme noutro lugar. No instante seguinte, o
cangaceiro já tava mandando bilhete pra Mané Belarmino. E certamente pra ele
mandar pro coito a melhor televisão que existisse. Mas voltando ao celular,
pois foi assim mesmo.
Lampião gostava de tirar retrato com ele, até
mandava que filmassem ele fazendo jeito de tiro e de ataque. Mandava retrato
direto pra Padre Ciço. Sempre se afastava um pouco quando o assunto era mais
segredoso, mas ainda dava pra ouvir: “Dez caixas de munição e mais duas de arma
boa. Também uma remessa de charuto cubano e uma porção de litros de uísque
escocês. Maria disse que não se esqueça dos vinhos, dos perfumes franceses e
dos queijos finos...”. Mas logo esse celular que ele tanto gostava foi acabar a
bateria.
E na véspera do triste acontecido. Eu mesmo
não vi não, não vou mentir, mas dizem que quando lhe mandaram um balaço, o rei
cangaceiro tava de celular na mão. Mesmo sem carga na bateria, certamente
queria fazer uma ligação de urgência. Talvez gritar perguntando: “Seu fi de uma
égua, é com traição que quer me pagar o que me deve?”. Foi tarde demais. O celular
não falou e a bala comeu no centro. Sim, pra que não esqueça, a verdade é que depois
do acontecido, com aquela matança toda, carregaram a bateria do celular e
encontraram no whatsapp uma lista espantosa de amigos: governador, político,
comandante de volante, coronel, todo mundo. Foi assim mesmo, pode acreditar!”.
Acreditar? Mas como acreditar em tanta
mentira? Mas, por fim, perguntei: “E entre os coiteiros, quem tinha telefone
celular?”. “Eu”, e esta foi a resposta mais deslavada que já ouvi. E o velho
mentiroso, talvez achando pouco, ainda disse: “Mas o meu era feito de osso de
gado...”.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário