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sexta-feira, 14 de novembro de 2014

MANOEL DE BARROS, O ADEUS DO MENINO DO MATO


Rangel Alves da Costa*


Partiu o menino do mato, aquele que entendia e explicava o mundo naquilo que para os outros eram apenas insignificâncias. O poeta do inútil cativante e dos segredos revelados em qualquer canto de chão. Foi-se o poeta do mato, da natureza, da singeleza, do gafanhoto e do garrancho de pau. Partiu Manoel de Barros, ou aquele que buscava no contexto das coisas simples o entendimento do mundo.
Manoel de Barros foi menino do mundo, da cidade grande, das letras jurídicas, do ideário comunista, de um tempo sem destino certo, mas acabou preferindo – e eternamente – ser apenas um menino do mato. E “Menino do Mato” foi o título de seu penúltimo livro, publicado em 2010. E agora o poema mais triste: o seu falecimento aos 97 anos, nesta quinta-feira 13/11, em Cuiabá. Aliás, foi no interior sul-matogrossense, distante da cidade grande e rodeado pela natureza que se fez menino do mato.
Seu percurso literário envolve, dentre poesias, contos e relatos, mais de três dezenas de livros, dentre os quais: Poemas concebidos sem pecado, Face imóvel, Compêndio para uso dos pássaros, Gramática expositiva do chão, Arranjos para assobio, O guardador das águas, Concerto a céu aberto para solos de aves, O livro das ignorãças, O fazedor de amanhecer, Memórias inventadas, e Escritos em verbal de ave. Este o último livro publicado, em 2011.
Drummond, com razão, reconhecia em Manoel de Barros o poeta por excelência; enquanto este reconhecia naquele a primazia dentre todos os ilusionistas da palavra. Contudo, enquanto Drummond era poeta do mundo, da alma humana e do amor, Manoel de Barros era o poeta da terra, do chão, da simplicidade, encontrando motivos nos meios mais impensáveis aos cultores da escrita poética.
Daí que a poesia de Barros era quase toda construída no inusitado, no impensado, no diferente. Via tudo com significação, desde o grão de terra à agua correndo, do tronco esquecido à folha inerme, da sutileza da paisagem ao que somente a arqueologia poética poderia encontrar. Ora, segundo ele, o visgo do barro, o barro trabalhado, o barro quebrado, tudo é poesia. E assim também com o silêncio da brisa, a solidão do passarinho, a minúscula situação de vida.
Seus poemas são, assim, feitos na argila, no barro, na poeira e no pó. Tudo nascido pelas mãos de um menino do mato que conduziu as palavras como revoada de entardecer. Eis, por exemplo, o que diz em Mundo Pequeno - I:

“O mundo meu é pequeno, Senhor.
 Tem um rio e um pouco de árvores.
 Nossa casa foi feita de costas para o rio.
 Formigas recortam roseiras da avó.
 Nos fundos do quintal há um menino e suas latas maravilhosas.
 Seu olho exagera o azul.
 Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas com aves.
 Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco,
 os besouros pensam que estão no incêndio.
 Quando o rio está começando um peixe,
 Ele me coisa
 Ele me rã
 Ele me árvore.
 De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os ocasos”.

Para muitos críticos, contudo, a característica maior de Manoel de Barros está na sua contestação aos formalismos em nome da verdade despida de estética. Daí procurar deixar claro seu compromisso com o mais sublime da vida, como demonstrado no seguinte trecho do poema “O apanhador de desperdícios”:

“Uso a palavra para compor meus silêncios.
 Não gosto das palavras
 fatigadas de informar.
 Dou mais respeito
 às que vivem de barriga no chão
 tipo água pedra sapo.
 Entendo bem o sotaque das águas
 Dou respeito às coisas desimportantes
 e aos seres desimportantes...”.

Partiu o menino do mato. Mas do seu ninho ainda uma voz ecoando: “A voz de um passarinho me recita”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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