SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 10 de novembro de 2014

O VELHO ESCRITOR


Rangel Alves da Costa*


A chama da vela ia diminuindo lentamente e ele parecia nem perceber. Quando a resina consumia todo o pavio e a última chama se esvaía, então o breu o fazia voltar à realidade. Antes disso se entregava de corpo e alma, quase que passionalmente, a descrever como as borboletas repentinamente surgiam no quarto e voavam ao redor da mocinha adormecida com feição chorosa.
Ou saía tateando para encontrar outra vela ou tinha de permanecer na escuridão. Não havia outro jeito. A luz elétrica havia sido cortada por falta de pagamento, e assim já havia se passado quase um mês. Então levantou e foi se batendo sobre os móveis antigos, chutando garrafas vazias espalhadas pelo chão, até lembrar que tinha uma caixa de fósforos no bolso. Acendeu o palito e se pôs em busca de mais uma vela. Com a volta da luz tomou mais uma dose de aguardente e sentou diante da velha máquina de escrever.
“Assim como chegavam as borboletas sumiam, repentinamente. Bastava que a mocinha começasse a despertar e todas seguiam em direção à janela, por onde passavam mesmo que estivesse fechada. Mesmo sem jamais ter visto aquelas visitantes, um fato causava muita estranheza à bela jovem, eis que encontrava asas de borboletas, pétalas de rosas e até favos de mel ali espalhados...”.
Foi esta a escrita seguinte ao retorno da chama. Certamente que escreveria muito mais naquela noite, talvez adentrasse na madrugada naquele seu doce ofício. Gostava de escrever, de criar situações, tramas, enredos, dar vida a personagens, comandar seus destinos, ser um deus daquele universo de papel, daquela história. Assim o velho escritor, assim a solidão de um homem que outra coisa não fazia a não ser escrever, escrever e escrever.
Mas já estava cansado. Já nem sabia quantos romances mantinha guardados nas suas gavetas empoeiradas, em meio às traças e à voracidade do tempo. Também já estava cansado de colocar manuscritos debaixo do braço, pagar caro para copiar e pagar mais caro ainda para registrar em cartório, e depois entregar a editores que sequer davam uma futura satisfação. Sabia muito bem que o destino de suas histórias não era muito diferente daquele encontrado nas velhas gavetas de sua casa.
Tinha vontade de pedir licença a cada um daqueles editores para ler alguns trechos de seus romances, contar detalhes sobre a trama, falar dos personagens, porém sabia que nenhum daria oportunidade. E tinha mais vontade ainda de dizer que precisavam reconhecer o que é uma boa escrita e o que é apenas um monte de palavras sem qualquer qualidade literária. E acrescentar ainda que uma boa história está no contexto e no acuido da trama, e não na fama do nome do autor.
Mas apenas solicitava que olhassem aquela obra com atenção. Assim mesmo já fizera com tantas outras, sem os resultados esperados. Porém nada disso o desestimulava. Pelo contrário, escrevia cada vez mais, produzia cada vez mais, pois se sentia feliz em criar e plenamente realizado ao escrever a frase final de mais um romance. E depois lia inteirinho como se fosse um leitor se encantando com a leitura. Tal prazer ninguém lhe tirava.
Mas a sua obra não era de toda esquecida. Uns quatro ou cinco romances já havia, há muito tempo atrás, obtido até linhas favoráveis da crítica. O problema maior era que não aceitava mais entregar oitenta por cento da vendagem de cada livro à editora e lhe restar somente uma ninharia. E sua esperança era juntar dinheiro suficiente para ir lançando seus livros, um a um, por conta própria. Mas o que recebia como aposentado não chegava nem à metade do mês. Por isso mesmo que até a energia elétrica havia sido cortada.
Tinha esperança de fazer assim, mas também sabia que seria quase impossível. Estava velho demais, cansado demais, sem muitos anos pela frente. Vivendo sozinho, entre livros, traças e sonhos, não lhe restava senão conversar com suas próprias criaturas. E oferecia aguardente a um, cigarro a outro, de vez em quando perguntando se já não estava bêbado demais para conversar com pessoa tão importante. Sofria e até chorava toda vez que abria a gaveta para se despedir de quem lhe era tão importante.
A madrugada quase chegando e o velho escritor ainda teclando suas vidas. Mas a vela novamente acabou e não havia mais outra. Então ele acendeu um fósforo, virou o que restava da garrafa num copo, bebeu e se dirigiu até um espelho. Com a chama apagada, apenas disse: Como estou noite!
E adormeceu chorando, avistando uma inexistente lua.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

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