SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 18 de julho de 2017

NA FEIRA DO INTERIOR


*Rangel Alves da Costa


Não há nada mais gostoso e cativante que uma feira interiorana, bem matuta mesmo, daquelas onde a singeleza brilha mais olhos que os shoppings de capital. Tem caçuá, tem rapadura, tem bolo de milho, tem milho verde, tem arreio, tem arroz-doce, tem melancia e melão coalhada. E também tem aquela magia especial da presença do produtor, do feirante, das pessoas mais simples.
Tudo aceso feito braseiro ainda na madrugada. Pouco tempo depois já começa a fervilhar feito formigueiro. Contudo, mais tarde tudo já parece um descampado abandonado às traças, tomado de bagaceira, sujeira de toda espécie. Não poderia ser diferente. Já é fim de feira. Mas é no seu percurso que está todo o encantamento.
Se feira interiorana é acontecimento dos mais atraentes, instigante e concorrido, o que se vê quando o comércio matuto se finda é coisa de arrepiar. As cores, os cheiros, o povo de matiz trigueiro, as barracas, as bancas, as vozes, as frutas, verduras, farinha, a carne, de tudo um pouco, logo dão lugar à sujeira e imundícies jamais imaginadas para um lugar que há bem pouco guardava tantos atrativos e sabores.
Até parece que a feira espera o povo matar a fome nas barracas cheirosas e apetitosas, se fartando da carne fresca de boi, de porco ou de bode, ou na gulodice do sarapatel, do fígado acebolado ou ainda da invenção sertaneja do dia, para se despedir da função. Enquanto os últimos famintos pedem um pouquinho mais de galinha de capoeira, as barracas já estão sendo desmontadas, os restos embalados e os caçuás recebendo o que não foi vendido.
Já é hora de avistar, e até contar, todos os bêbados do dia. Aqueles que começaram o dia tomando uma pinguinha, e em meio à compra do tomate, do quilo de farinha, do pedaço de fumo de rolo, emborcaram mais uma e depois mais outras. No tropel de fim de feira já não saem mais do balcão, já não sabem nem quantas viraram e quantas raízes de pau talagaram sem pestanejar.
Os bares e barracos ladeando a feira ficam repletos depois que os compradores se dissipam e os feirantes vão contando seus lucros e lamentando o que vai ter de retornar. Aguardente misturada com raiz ou casca de pau, com angico, umburana, aroeira, cedro, uma vegetação sertaneja inteira, faz a festança de um povo sempre disposto a virar mais uma. E aí é onde está o problema.
Já tomados demais, amigos desconhecem amigos, os inimigos de pinga se estranham de peixeira na mão. O fuzuê é criado, é um vexame danado, por pouco um não desembucha o outro. Os dois são retirados do ambiente e por lá mesmo, no pé do balcão ou num canto qualquer, a feirinha da semana é esquecida. E mais tarde, completamente bêbados, às cegas, cortam estrada para apanhar da mulher quando chegar à tapera.
“Coisa feia, um homi véio desse, pai de famia, bom de se arrespeitá, espanta o galo pa ir pa feira e vorta feito um gambá. Tá qui num se sustenta nem de pé, seu desgraçado. A feira, cadê a feira?”. O coitado, sem condições de responder a contento, até mesmo porque não sabe onde o saco de mantimentos ficou, tropeça até a malhada e começa a entoar um desafinado e doloroso aboio. Mas doloroso mesmo vai ficar seu lombo daí em diante.
Mas enquanto a feira vai terminando é que algumas pessoas sempre atrasadas começam a chegar. Não que procurem o lugar pra comprar pano de chita, água de colônia, talco de pó, presilha de cabelo ou um quadro bonito da Virgem Maria. E também não vão até ali para escolher a verdura, a fruta, o arroz, o café, a farinha. Nada disso. Vão precisamente para fazer o que sempre fazem no fim de feira: colher os restos, catar os restos, mendigar pelo chão.
Homens, mulheres, velhos, meninos, pessoas de fim de feira. Acordaram tão ou até mais cedo que as outras pessoas que passaram pelas suas portas em direção ao comércio semanal interiorano. Avistaram adiante, virando a curva, seguindo de mochila, saco ou sacola à mão pra colocar as compras. Aquelas pessoas que passam e que vão certamente levam algum no bolso e poderão escolher sem pedir, sem a submissão da mendicância.
Porém muitas outras não. Quando as pessoas retornam com suas compras e quando, vigiando pelos arredores, sentem que o restante que ficou por ali espalhado não possui mais dono, é que vão catar o alimento do dia e talvez o de amanhã. Banana amassada ou apodrecida, tomate e pimentão imprestáveis, repolhos e folhas deixados pelos cantos. E que festa ao olhar da penúria, da necessidade, da precisão.
Alguns desses sacrificados chegam logo cedinho, se misturam a feirantes e compradores e pedem o quanto podem. Mas outros não. Outros, tomados pela imorredoura honra matuta, preferem catar os restos a estender a mão diante de outra mão, de outro olhar sertanejo. Seria desonra demais, seria dor ainda maior.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com        

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