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domingo, 21 de março de 2010

CARTA ENVIADA DO CÉU (Crônica)

CARTA ENVIADA DO CÉU

Rangel Alves da Costa*


Não se sabe se chegou no vento, não se sabe se foi trazida por um anjo, não se sabe de qual norte ou sul apareceu, mas a verdade é que a carta chegou, timbrada com o selo do céu, lacrado com o supremo brasão da cruz. A mesma carta, contudo, estava por todos os lugares, embaixo das portas, nos bancos das praças, endereçada a quem lhe abrisse primeiro.
Memento homo quia es pulvis et in pulverem reverteris, eram as primeiras palavras: Lembra-te, homem, de que és pó e em pó hás de tornar.
E antes que vejas o céu como última moradia do teu ser, responda a primeira pergunta: Tu amas a Deus sobre todas as coisas? João pensou e pensou e respondeu pra si mesmo que sim, e que o seu amor era tanto que se sentia no direito de dizer que em muitas pessoas esse devoção parecia não ser correspondida. E lembrou da pobreza pelo mundo matando crianças inocentes, da violência que ceifa vidas cujo bem maior que possuem é a fé, da indiferença que se alastra nos homens que são filhos de um mesmo pai e que deveriam saber que são filhos de um só pai.
E antes que subas pelas escadas das tuas ações e alcance os portais do céu, responda a segunda pergunta: Tomas o nome do teu Deus em vão? Célia pensou e pensou e disse a si mesma que reconhecia guardar esse pecado consigo, mas ao mesmo tempo se justificou afirmando que diante da carência e do medo do ser humano em todas as situações da vida, não há nada a se fazer senão invocar o nome de Deus em tudo, até mesmo nos momentos indevidos. Assim, deveria ser perdoada porque o que pronuncia não é um desrespeito ao nome do Senhor, mas sim uma forma de dizer que este ser superior está presente em tudo que faz na vida.
E antes que desejes ser recebido em festa nas portas do céu, responda a terceira pergunta: Tu guardas os domingos e feriados para santificar o nome do Senhor? Suzete pensou e pensou e disse a si mesma o quanto acharia bom que isso fosse possível, trabalhando os seis dias da semana e reservando o sétimo dia para realizar as boas obras desejadas por Deus. Contudo, pensou a mocinha, nos dias em que vivemos, onde o trabalho incessante e ininterrupto se tornou em verdadeira necessidade de sobrevivência, dificilmente encontramos qualquer dia na semana para nós mesmos, para refletirmos sobre a vida, para repousar e descansar. O ser humano não comanda mais os seus dias, não tem mais o direito de deixar de viver seu momento para se entregar às boas ações. Que estas sejam feitas sempre, mas no mesmo cotidiano em que o trabalho para a sobrevivência chama e exige.
E antes que se arvore no direito de adentrar no reino dos céus, responda a quarta pergunta: Honras teu pai e tua mãe? Lúcia pensou e pensou e começou a chorar. Começou a lembrar dos seus pais quando vivos, quanto amor verdadeiro sentia por eles, quanto respeito aos dois devotava, vivendo sob os conselhos daquelas autoridades nas palavras e amigos no ensinar a caminhar sempre pelos melhores caminhos. Este pecado da desonra aos genitores nunca tinha prosperado na sua alma bondosa e consciente de filha.
E antes que digas que teus atos testemunham pela tua entrada no céu, responda a quinta pergunta: A pessoa pode tirar a vida de outra ou dar fim à própria vida? Sinésio pensou e pensou e disse a si mesmo que essa pergunta era mais difícil de se responder do que imaginava. Ora, pensou ele, se todos tivessem a exata noção da importância da vida, do valor que tem cada ser humano e das conseqüências religiosas, morais e jurídicas que refletirão naquele que tira a vida do outro, logicamente que o mundo estaria livre dos homicídios e suicídios. Porém, o homem vivendo entre feras tem que se defender, e muitas vezes atacando, cortando a raiz daquele que quer lhe deixar sem sementes. É por isso que as desgraças existem e tal pecado será muito difícil de ser extirpado da terra.
E antes que proclames aos quatros ventos que a tua entrada no céu já está garantida, responda a sexta pergunta: Tu pecas contra a castidade? Solange pensou e pensou e disse a si mesma que hoje em dia se contam nos dedos as pessoas que sabem o que seja castidade, mas não se pode contar o número de pessoas que vivem no pecado, do pecado e na total perdição. Até tem um ditado que diz que a castidade abortou antes de casar.
E antes que digas que já estás com as chaves do reino dos céus, responda a sétima pergunta: Já roubaste? Astromar pensou e pensou e disse a si mesmo que não iria nem pensar em responder, pois roubar goiaba do quintal do vizinho ou uma rosa do jardim não deve ser considerado pecado, pois toda criança faz isso. Mas depois pensou nos assaltantes, nas taxas de juros que as pessoas são obrigadas a pagar e nos políticos, e resolveu que não iria mesmo responder a pergunta. Disse que nem precisava.
E antes que convide amigos porque tua infinita bondade lhe assegura um camarote no céu, responda a oitava pergunta: Tu levantas falso testemunho contra teu próximo? Gracinha pensou e pensou e disse a si mesma que a maioria das pessoas não diz a verdade nem quando prestam juramento em juízo, quando mais nas relações interpessoais, onde imperam os verdadeiros modismos de se diminuir ou aumentar os fatos, a criação de situações inexistentes somente para prejudicar, bem como as dissimulações e as hipocrisias.
E antes que diga que o céu pode esperar e guardar o seu lugar, responda primeira a nona pergunta: Desejas a mulher do próximo? Josimar nem pensou, apenas ficou sorrindo e falando pra si mesmo como certas perguntas são inocentes, nunca teve e nem tem cabimento de se perguntar. Mas ora, disse ele, se é ela mesma que não se dá o respeito e procura ser desejada, principalmente quando o próximo não está próximo.
E antes que diga que já tem vaga no reino dos céus e com um carro novinho na garagem, responda a décima e última pergunta: Tu cobiças as coisas alheias? Neusa pensou e pensou e disse a si mesma que não, pois praticamente era uma pessoa pura e sem pecados, que nunca teve vontade de ter mais do que tem, a não ser o emprego de Matildes, o carro de Jessé e as roupas que Marina usa.
Por fim, na missiva enviada do céu havia ainda uma observação na parte final do texto: Se todas as respostas dadas estiverem em consonância com os ensinamentos divinos todos receberão suas chaves no momento certo. Do contrário, e em caso de desempate, será feito um sorteio com uma bolinha branca e outra preta. Se cair a bolinha preta...



Advogado e pota
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