PUXE O FOLE, ZÉ!
Rangel Alves da Costa*
Menino, mas não se falava noutra coisa não. Se naquela noite ia ter forrobodó, então o converseiro se esparramava pelos quatros cantos, com quase todo mundo se planejando pra ir ralar a fivela, fazer o chinelo chiar, sentir o bafo quente no cangote. Eita festança boa vai ser, era o que se ouvia da cidade ao meio do mato.
A solteirona chega já estava de joelho avermelhado, inchado, dolorido de tanto ficar ajoelhada defronte ao oratório para pagar a promessa. Se aparecesse por ali um sanfoneiro bom, forrozeiro afamado pelos salões de taipa do sertão, então rezaria, de joelhos, cem ave-marias e cento e um pai-nossos. O um ninguém sabe dizer por que, mas a verdade é que a mulher chega fruviava por dentro, num fogo danado, já fazendo outra promessa mais volumosa se desencantasse naquela noite.
Os vestidos de chita, de roupa barata de feira, mas tudo enfeitado com laço e flor de pano vermelho eram jogados por cima das camas dos quartos das mocinhas mais lindas do mundo. Saia florida descendo o joelho, vestido rodado ainda não usado. O cheiro de naftalina subindo no ar e querendo também dançar. Uma pulseira bonita, um enfeite pra o cabelo, o batom avermelhado, o perfume que ia ensandecendo os ambientes.
De porta em porta o engraxate ia dando vida nova aos sapatos da rapaziada. Cada sapato antigo que não se encontrava igual em lugar algum, mas ficava um belezura quando a flanela ia lambendo o couro para dar o acabamento. A calça era a melhor que tivesse, os mais jovens gostavam de boca de sino, bem larga embaixo. Quando o pano era pouco se colocava uma nesga e se tornava numa coisa do outro mundo. Ah, quanta beleza matuta.
Naquele dia de forró a camisa também tinha de ser a melhor, aquela guardada pra ser usada somente em ocasiões especiais. E se a camisa fosse de volta-ao-mundo, bem leve, com uns motivos dispostos no próprio pano, era certeza que iria atrair muitos olhares da mulherada. O cabelo cheio de brilhantina, o pente com um espelhinho oval no bolso, até carteira ia usar nesse dia. Porém, por mais perfume que colocasse não afastava o cheiro da pinga, da cerveja ou aguardente tomada já no preparo para a festança.
No dia anterior já começaram a surgir uns boatos diferentes sobre o nome do tocador que iria forrozeirar a noite inteira. Naquela região tinha sanfoneiro igual a banana de cacho na feira, em cada canto, em cada pé de serra. Contudo, nem todo mundo que ostentava uma sanfona no peito podia ser considerado sanfoneiro de verdade. Pra bebericar e rodar salão valia com qualquer um, mas quando se falava em festa da padroeira, em quermesse, em festa junina, então o homem dos oito baixos tinha que ser escolhido a dedo.
Uns diziam que o sanfoneiro responsável pelo ralabucho seria Raimundinho das Areias, pois se não tocava igual aos outros ao menos era mais disposto de virar noite e fazer o povo cansar; já outros apostavam que seria um nome diferente, vindo da capital, especialmente contratado pelo coronel porque o homem, velho safado, casado e já avó de muitos netos, estava encegueirado pela jambice cabocla e o remelexo da mocinha do sítio. Havia contratado o sanfoneiro famoso pra impressionar, na esperança de deitar a poltranca por cima dos capins.
Os mais velhos não gostavam dessa história de sanfoneiro famoso não, de artista da cidade grande de jeito nenhum. E diziam com justa razão que puxam o fole por duas horas e quando a coisa tá no melhor, já quer começar a pegar fogo, então tudo se acaba. E o pior que depois botam umas caixas de som com sanfonagem que não vale nada, pois sem aquele som verdadeiramente matuto que faz dançar e chorar.
E tinham mais razão ainda porque a região era celeiro de tudo que fosse bom e melhor no que dissesse respeito a forró. E podia contar nos dedos das mãos de todo mundo quantos cabras autenticamente sertanejos eram tocadores de respeito e veneração. Zé Aleixo, Dudu e seu terno de linho branco e Zé Goiti, só pra começar. Para se ter uma ideia, quando um cabra desses puxava o fole nem precisava que Zelito, o cantador maior, acompanhasse, pois parecia que a própria sanfona já soava o toque e trazia consigo a voz, a plangência de cada nota e o soar da melodia que alegrava o sertão e suas noites de festança e forró.
E enquanto Zé Aleixo tomava uma pinga, Zelito batia no seu pandeiro e cantava, sem voz igual pra forró de salão: “Mulher/ Deixaste tua moradia/ Pra viver de boemia/ E beber nos cabarés/ E eu pra não morrer de tristeza/ Me sento na mesma mesa/ Mesmo sabendo quem és/ E eu pra não morrer de tristeza/ Me sento na mesma mesa/ Mesmo sabendo quem és.../ Hoje nós vivemos de bebida/ Sem consolo, sem guarida/ Ó mundo enganador/ Quem era eu/ Quem eras tu/ Quem somos agora/ Companheiros de outrora/ E inimigos do amor...”.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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