SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 8 de setembro de 2011

MEMÓRIA E SAUDADE (Crônica)

MEMÓRIA E SAUDADE

                            Rangel Alves da Costa*


Dia desses resolvi botar o pé fora da porta, dar um salto maior em chão de vento e redemoinho e assim fui eu rumo ao meu berço de nascimento, nas distâncias do sertão de Sergipe, lá onde dizem que o sol é mais quente e a seca está sempre com fome e devorando tudo. Também tenho saudades minha gente e cada viagem é um desarquivamento da memória.
Saí cedinho da capital. Carro dos outros porque desaprendi a dirigi depois que meu Baja Bugre vermelho-vinho, de pneus parecendo um trator, me abandonou faz muito tempo. Tenho saudades porque era o meu carro e o meu banco de praça, meu lugar de dormir nas tantas festas que brinquei e amigo pra muito mais. Silencioso e leal, nunca disse a ninguém nem um terço do que presenciou.
Depois da região metropolitana e quando as estradas vão indicando nomes de lugarejos, povoados e cidades, as paisagens e tudo começa a mudar. O clima se torna diferente, mais terra, mais chão, mais chamando a gente, em meio à natureza, que mesmo devastada em muitos locais, ainda anima o espírito e traz alegria ao olhar.
Já perto da entrada do sertão, que logo se reconhece pela vegetação de catingueiras, plantio de palmas, plantas rasteiras, cactos crescendo até em cima de pedra, o gado magro pastando e pequenas fazendas e modestas construções de beira de estrada, a memória começa a se avivar porque parece que o tempo não passa de jeito nenhum por ali.
Se as cidades se transformam com uma praça nova que surge, pelas brenhas que se adentra é sempre a mesma coisa. Quem passou por determinado lugar há vinte anos atrás, talvez agora encontre a rodovia asfaltada, porém vai encontrar a mesma casinha pobre, a mesma moradia acanhada de porta dividida em duas, ficando a parte debaixo fechada e a parte de cima aberta.
E na parte de cima da porta, ou mesmo na janela lateral, a comadre de pano na cabeça olhando pro mundo, espiando o menino nu que brinca com qualquer coisa do mato adiante. Uma velha cadeira de balanço debaixo de um pé de umbuzeiro, um carro-de-bois largado mais adiante, porque o dono não pôde manter os animais. E aquela solidão ao redor, um mundão de tristeza e de vida de sempre, desde o cantar do galo ao anoitecer.
Como antes, como há muito tempo atrás, os meninos de oito, nove, dez anos, estão debaixo do sol mexendo a terra com uma enxada, um facão, uma foice. A escola logo adiante parece não existir para muitos desses pequenos sertanejos, pois o fator sobrevivência da família sacrifica a educação desde a infância. Quando se avista crianças indo à escola, logo se verá o caderninho debaixo do braço e o lápis sem ponta na mão.
E muitos não vão estudar, mas tão-somente comer a merenda rala que é servida, qualquer pedaço de qualquer coisa, pois é a única comida do dia. Ora, as panelas estão na cozinha da casa e em cima do fogão de lenha, mas até que se arrume o que cozinhar é um deus-nos-acuda.
Viajando por esses cantos e recantos que conheço muito bem, pois filho orgulhoso de lá, nada me espanta e nem enche mais os olhos de lágrimas. Chorei demais e ensinei muita gente a não chorar. Enxuguei as lágrimas por vontade própria porque passei a sentir que os meus conterrâneos, ainda que uma pregação tente ensinar que toda mudança para o progresso e desenvolvimento é sempre útil, insistem em continuar sofrendo.
Lembro bem que mais longe no tempo o sertanejo era matuto em toda sua extensão, no seu jeito de ser, de agir e interagir. Era acanhado, calado, cabisbaixo, mas quando abria a boca era para sair uma decisão incontroversa, séria, fechada. Aos poucos foi acostumando a ser apenas chamado de matuto, mas já agindo e pensando diferente, saindo muito de si, perdendo algumas de suas características essenciais para se transformar num sertanejo que gosta de ser manipulado para ganhar recompensas.
Logicamente que não todos, mas o sertanejo de hoje quer ser visto como matuto apenas para disfarçar sua capacidade de ser submisso, vendendo a qualquer preço e sem mais aquela palavra séria que tinha antes. Hoje em dia aprendeu a vender o voto, a trocar a honra por um candidato, a fazer cena dos torcedores fanáticos. São apenas pessoas, que depois de cada eleição são encontrados nos descampados de desesperança.
Assim, creio que daqui após mil anos serão as mesmas paisagens nas estradas sertanejas, os mesmos rostos e os mesmos jeitos de ser. Tudo muda, mas o homem do sertão insiste em permanecer como o nada que era nos tempos mais antigos. E faz do voto, sempre escolhendo aquele que é pior pra ele, que mais lhe engana, o instrumento de perpetuação do nada.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

 

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