SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 20 de setembro de 2011

AS APARÊNCIAS (Crônica)

AS APARÊNCIAS

                                         Rangel Alves da Costa*


E de repente o mundo parou. E quando alguém lá em cima apertou a tecla pause e o mundo empacou, do jeito que tudo estava tudo ficou, nada mais se mexia, as pessoas, a natureza, os animais, até o vento ficou imóvel com a folha que carregava no ar.
A bola se deteve faltando um palmo para ultrapassar a linha do gol, a pipa ficou estática lá no ar, o coco esbarrou no ar e não caiu na cabeça do turista, a onda permaneceu no seu avanço, a lava do vulcão ficou apenas na garganta, o sol ardente permaneceu assim mesmo. Tudo do mesmo jeito, sem sair nada do lugar, como estava no momento da pausa.
A mulher levando uma colherada de sarapatel à boca, a moça se ensaboando debaixo do chuveiro, o menino de olho fixo no buraco da fechadura, a bala parada no ar e o animal tentando fugir à frente, o pão sem se queimar no braseiro, a cabeça da criança irrompendo para nascer, a velha tropeçando e caindo ao chão. Tudo continuaria assim, desse mesmo jeito, até ninguém sabe quando.
Com tudo parado, nenhum movimento, era de se estranhar que esse estranho mundo, ao voltar ao normal, nem percebesse que havia ficado estático no tempo. Mas nada disso havia acontecido ao acaso, pois premeditado exatamente para que duas pessoas procurassem entender como as aparências enganam.
Eis que diante de tudo pausado, surgem duas pessoas virando uma esquina e caminhando tranquilamente, envoltas em diálogos filosofais. Tratava-se de um discípulo e o seu mestre, um jovem e um ancião, um aprendiz dos mistérios da vida e o outro já envelhecido nas suposições sobre tudo que havia no universo.
O velho mentor disse ao aluno que continuassem caminhando para observar melhor tudo aquilo parado ao redor, os gestos das pessoas no momento da imobilidade e o que poderiam estar fazendo ou pretendendo fazer naquele dado instante. Para tal, seria preciso que o aluno dissesse o que achava diante de cada situação.
Então seguiram e o jovem apontou dizendo que via uma mocinha com um lenço na mão dando adeus. E o velho mestre respondeu que não. Disse que o trem já havia partido e estava estático na curva da montanha, e desse modo ela só poderia estar acenando para alguém e dizendo que enfim o outro havia partido.
O aprendiz apontou um homem estendido numa calçada e disse que talvez aquele houvesse bebido demais e estava entregue ao sono alcoólico. E o velho mestre disse que seria melhor que fosse assim mesmo, pois logo se recuperaria da bebedeira e não levaria tanto sofrimento aos seus familiares, pois na verdade o homem acabara de cair morto quando tudo parou.
Mais adiante o jovem apontou para um rapaz sobre uma janela no lado de uma casa e afirmou que talvez estivesse fugindo de algum acontecimento estranho ocorrido nas dependências. E o velho disse que não, pois pela perna que estava mais inclinada para o lado de dentro ele só poderia estar entrando furtivamente, como fazem os amantes em busca dos beijos roubados nas alcovas adúlteras.
Apontando para o sacerdote que dizia algo junto ao ouvido da beata, o jovem aprendiz disse ter certeza que o religioso estava repassando alguma boa lição à mulher, algum ensinamento à ovelha do seu rebanho. E o filósofo respondeu que quem dera fosse isso mesmo, pois o que se via ali era um verdadeiro ato pecaminoso. E explicou que o padre, pelo brilho insinuante do seu olhar, estava marcando com a mulher encontro amoroso lá na sacristia, dali a instantes.
Já tendo caminhando muito, o jovem avistou uma porta entreaberta, numa casinha muito humilde, e disse que dali de dentro talvez não tivesse tido tempo de sair uma pessoa pobre para a sua labuta diária. E o velho filósofo disse que ali não morava ninguém, que a porta vivia dia e noite batendo sem que ninguém entrasse ou saísse. E disse ainda que talvez fosse bom que ficassem ali diante da casinha até a vida voltar ao normal, pois precisavam entrar nela para repousar.
Então o jovem se virou para ele e disse que não estava cansado e que seguiria em frente por dias e noites inteiras. E o filósofo, feliz porque o discípulo demonstrava ter aprendido as lições, simplesmente disse que também não se cansava nunca. E seguiram para repousar na casinha porque tudo já estava voltando ao normal.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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