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terça-feira, 20 de setembro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 36 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 36

                                         Rangel Alves da Costa*


Jozué entrou assustado, andando lentamente, como quem envergonhado e temeroso. Lembrava passarinho quando de repente é colocado pra fora da gaiola, tendo à frente aquilo que não lembra mais. Verdade é que estava com feições tristes, olhos afundados e estranhamente brilhantes, mas ainda conservava uma rigidez corporal própria dos jovens cujo sofrimento não os consegue abater tão rapidamente.
Por enquanto ainda se mantinha sem demonstrar enfraquecimentos maiores, a não ser no aspecto tomado por uma dor invisível. Ora, mas ninguém vê o cupim que corroi internamente a madeira, a doença que se alastra por dentro, a desilusão que faz moradia em lugares desconhecidos, a desesperança que toma feição sem ter de mostrar sua face.
Mas era bonito, assim achou Carmen à primeira vista, e muito mais bem afeiçoado do que demonstrava ser naquela fotografia que sua mãe, Dona Leontina, havia mostrado. Contudo, logo começaria a definhar naquele cotidiano afrontoso aos mais elementares princípios do respeito aos direitos humanos. Infelizmente a visitante teve de dolorosamente dizer a si mesma.
Em pé, conservando as argolas de ferro nos pulsos, o guarda prisional perguntou a Carmen se desejava que fossem retiradas as algemas por aqueles instantes. Na afirmação positiva, os grilhões foram retirados e ele convidado a sentar pela visitante num banco de cimento mais adiante. Contudo, ainda se mantendo em silêncio, sem conhecer quem estava ali adiante, resolveu ficar de pé, andando de um lado a outro.
Na verdade, a moça tinha tanto que conversar, mesmo sabendo que o tempo ali seria curto demais, que não sabia bem por onde começar. Foi preciso que ele se aproximasse mais e perguntasse se ela era advogada. Ela respondeu que ainda não, mas que no início do próximo ano talvez já estivesse atuando, principalmente na área criminal. Ia dar outras explicações, mas ele interrompeu para perguntar: “Eu tenho advogado?”.
A pergunta foi espantosa para Carmen, vez que Dr. Auto já havia afirmado tê-lo visitado várias vezes, repassando todo o percurso processual e fortalecendo o seu ânimo espiritual. Mais uma mentira do salafrário corrupto, pensou indignada. Mas naquele momento achava melhor responder que sim e assim o fez, afirmando mais:
“Conheço o seu advogado, pois trabalhei com ele. Foi indicado à sua mãe, Dona Leontina, por um deputado...”. E nesse ponto, agora sentando bem próximo a ela, rapidamente interrompeu para perguntar se conhecia sua mãe. A moça baixou a cabeça, entristecida demais com a pergunta, e respondeu que sim. Então ele fixou o olhar bem nos olhos dela e se pôs a falar pausadamente:
“Por que minha mãe nunca mais veio me visitar, será que ela vem ainda hoje? Gosto demais de minha mãe, sabia? Só existe no mundo eu e ela e é por isso que eu gosto ainda mais dela e sei o quanto está sofrendo, aperreando de só faltar morrer, por causa disso que fizeram comigo, por causa dessa injustiça que estão causando a um inocente. Eu sou inocente doutora, juro por Deus e por tudo na vida que sou inocente...”.
Baixando a cabeça e a segurando entre as mãos, o choro irrompeu entre as palavras. Carmen tocou no seu ombro e pediu que se acalmasse, que sua inocência seria provada e ele logo se livraria daquele lugar insuportável. Dizia isso apenas para vê-lo mais calmo e confortado, apenas por dizer, pois sabia que o seu futuro não seria dos melhores, que já estava condenado e se não acontecesse um verdadeiro milagre em curto espaço de tempo seria transferido dali para uma penitenciária ainda mais desumana e degradante. Seguiria diretamente para a “já morreu”, como a denominavam.
O problema é que não havia como não deixá-lo mais angustiado e triste, com a sensação muito maior de impotência e de total abandono, pois não poderia sair dali sem falar a verdade sobre o falecimento de sua mãe. Ainda que não mencionasse as circunstâncias, teria de dizer que ela havia sido sepultada ainda naquela manhã e, portanto, nunca mais a teria ali nem quando conseguisse a liberdade. E não somente isso, vez que não poderia negar a realidade sobre o andamento do processo e falar também na sentença proferida no dia anterior.
Carmen sabia que era complicado demais isso tudo, estar ali pela primeira vez para uma visita e nesse momento repassar tantas notícias ruins, tantas coisas desagradáveis, e tudo com o poder negativo de deixá-lo ainda mais fragilizado. Mas ele já estava assim, fragilizado demais, carente demais, abandonado demais, desiludido e desesperançoso demais. Era tudo visível e sentido demais ali naquele corpo agora encurvado, de cabeça baixa e derramando em lágrimas uma mínima parte de suas dores.
Então, diante do estado de Jozué, ela passou lentamente a mão pelos seus cabelos e disse:
“Tenha forças, reaja sempre Jozué. Olhe pra mim que quero lhe confessar algumas coisas. O advogado que estava acompanhando você não fez a defesa correta, não agiu como deveria ter feito um advogado inteligente e de responsabilidade, e você infelizmente acabou sendo muito prejudicado. A sentença de primeiro grau, daquele juiz que estava julgando os crimes que disseram que você praticou, saiu ontem e não foi nada boa a seu favor. Como o advogado quase não lhe defendeu, procurando muito mais prejudicar do que provar sua inocência, o juiz julgou e lhe impôs a culpa por todos os crimes que o outro Josué havia praticado. Você foi condenado no lugar dele e a pena máxima, sem poder recorrer em liberdade e se dentro do prazo legal não houver recurso de apelação pedindo o reexame da sentença e sua absolvição, provando o erro na decisão do juiz e apontando com evidência os elementos de sua inocência, então sua condenação passará a ser definitiva e terá de ser transferido daqui para outra penitenciária...”.
Como quem estava ouvindo uma conversa qualquer, sem demonstrar uma reação muito adversa, ele levantou a cabeça e disse baixinho:
“Essa noite eu sonhei com uma voz parecida demais com a da minha mãe dizendo isso mesmo, falando que eu tinha sido condenado, mas que eu tivesse fé em Deus. Depois que fui jogado aqui nunca esperei uma notícia boa, depois do que fizeram comigo sem que eu nunca na vida tivesse feito nada daquilo, nunca mais acreditei nos homens. Deus já deve tá cansado de me ouvir implorando, chamando o seu nome, mas que seja assim mesmo. Mas eu fico preocupado mesmo é com minha mãe. Ela já sabe dessa sentença, doutora?”.
Carmen pensou que não conseguiria se controlar assim que ouviu essa pergunta. Respondeu que sim, mas em seguida ouviu o que não esperava de jeito nenhum: “Quando minha mãe vem aqui, a doutora pede a ela pra vim aqui amanhã?”. Então ela não conseguiu se conter, arrebentou em pranto e envolveu a cabeça dele num abraço, dizendo:
“Ela morreu, sua mãe está morta Jozué!”.

                                                      continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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