SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 13 de setembro de 2011

SAUDADES (Crônica)

SAUDADES

                                      Rangel Alves da Costa*


Um dia, debaixo daquela luz mágica e encantadora do seu entardecer, em cima da pedra maior que existia lá pelas bandas do riachinho, olhei nos seus olhos através de sua paisagem e, deixando escorrer um fiozinho de água salobra, disse que tinha de ir adiante da cancela e seguir pela estrada.
O menino sertanejo colheu uma mão de terra do chão, recolheu um velho ninho de passarinho, arranjou uns gravetos e pediu ao homem da máquina de tripé para tirar uma fotografia bem bonita do seu lugar. Depois colocou tudo junto com os seus pertences e pegou estrada sem olhar pra trás. O animal galopava devagar, talvez esperando os acenos com o olhar, mas ele não olhou pra trás. Também não ia enxergar nada. Estava chorando.
Esse menino sou eu. Até onde eu possa me lembrar disso tudo, tenho a certeza que esse menino sou eu. O resto é tanta incerteza que nem sei por que saí de lá, por que deixei minha mataria e vim parar noutro lugar, por que tive de abandonar a natureza e me contentar com qualquer lua ou sol, por que resolvi viver pela vida afora calçado em sapato apertado se os pés descalços e amigo dos espinhos eram muito menos dolorosos do que agora.
Tinha de estudar, seu moço. Lá tinha escola sim, mas apenas numa placa na entrada dizendo que era, mas sem sala de aula, sem cadeira, sem caderno, sem livro. Eu tinha lápis que nunca precisei fazer a ponta. A professora, já velha demais, dizia que ganhava mais cuidando do seu reumatismo do que estar embaixo de umbuzeiro ensinando qualquer coisa.
E ela dizia bem que sem quadro de giz, o jeito que tinha para aprender mesmo era nas paisagens do sertão, pois ali estava a história, a geografia, as ciências, tudo. Nessas lições era doutora, e no resto era só professora, falando do jeito da gente e quase não sabendo de nada como a gente.
Um dia descobrimos que passava fome e todo dia um ia até lá com o que conseguisse na mata mesmo. Araticum, preá, umbu, nambu, rolinha, umas espigas de milho, um punhado de feijão. Tudo presente bom demais. Ficava toda envergonhada, mas sorria de alegria que só, mas depois que a gente saía se danava a chorar olhando pra uma velha fotografia pendurada na parede.
O rosto amarelado do professor falecido, formado na academia do massapé, da terra esturricada, do chão lanhado de sol, escrevendo com a enxada e desenhando na foice. Formado na terra, doutor na vida. Esse sim era doutor. Os outros não. Os da cidade não, pois só conhecem um tantinho do que a vida tanto tem pra ensinar.
Quando a velha professora soube que eu estava de partida, ajeitou as pernas como pôde e foi parar lá em casa. Levou-me um presentinho que ainda guardo até hoje, mas por certo fez muita falta nos seus momentos de relembranças e saudades do seu falecido. Chamou-me num canto da casa e colocou na minha mão um relógio de bolso, todo bonito, já muito antigo, mas ainda funcionando, marcando a hora num compasso triste demais de se ver.
Chorei e ela também. Minha mãe chorou e meu pai também. O papagaio safado, sempre arreliento com tudo, olhou ao redor e disse que já que todo mundo estava chorando então ia chorar também, e chorou. E depois morreu. Dias após a minha partida, segundo soube depois, de tão entristecido que ficou, foi chamando continuamente o meu nome, definhando e depois morreu.
E já na cidade grande quase morria também de saudades. E saudades da minha velha professora, dos meus amigos de reinações, da minha casa, da mataria, das manhãs e do entardecer, das brincadeiras perto e dentro do riachinho, da minha casa de taipa, da malhada de galinha ciscando e cachorro latindo, do meu pai e da minha mãe. Mesmo sem nunca ter tido, também tinha saudade do meu irmão.
Se minha professora me visse hoje de terno e gravata, formado nisso e naquilo, falando bonito pra impressionar, certamente que ia achar lindo, bonito demais, e ia chorar de novo. Diria que nem pareço mais aquele menino traquina de mataria e corre-corre pelos descampados.
Que Deus a conserve sempre ao Vosso lado, mas eu responderia que ficaria um príncipe, um verdadeiro rei, vestido de terno e gibão, e doutor de tudo, doutor de toda sabedoria, dessa escola chamada sertão.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

   

Nenhum comentário: