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terça-feira, 27 de setembro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 43 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 43

                                         Rangel Alves da Costa*


Depois de muito argumentar e falar sobre o estado emocional da filha e sua impossibilidade de fazer o reconhecimento do cadáver da mãe, Carmen enfim conseguiu estabelecer as linhas de identidade. E que cena mais terrível, repugnante, afrontosa à memória com a lembrança de uma pessoa como era e como de repente a encontra.
Ainda que tentasse a todo custo ser forte, principalmente para não fraquejar ainda mais a mocinha, saiu lá de dentro chorando de se acabar, com um lenço sobre o rosto, quase sem poder caminhar direito. E nesse momento foi a vez da outra tentar confortar a amiga de sua mãe. Somente depois que saíram para o lado externo do prédio, onde puderam respirar um ar diferenciado, é que as duas ficaram mais calmas.
Carmen disse que tinham de ir providenciar o caixão numa funerária ali próximo e que não se preocupasse pois não lhe custaria nada, que era uma homenagem que prestava a Dona Glorita. Ainda no veículo, perguntou se sabia onde o acidente tinha acontecido e em quais circunstâncias. E a mocinha, de cabeça baixa e constantemente levando lenços de papel ao nariz, falou o que sabia:
“Os policiais que foram lá me avisar disseram que ela foi atropelada no centro da cidade, logo depois da Praça das Flores, numa rua chamada Outono. E disseram ainda que pelos levantamentos preliminares, parece que ela ia atravessando a rua quando foi atropelada por um carro em alta velocidade. Só que o sinal estava aberto para os veículos e ela atravessou, ninguém sabe por quê...”.
Aguçada com essas primeiras informações, Carmen perguntou apressadamente: “Você disse que ela estava atravessando a Rua Outono de um lado para o outro quando houve o acidente, foi isso mesmo?”. A mocinha confirmou e então a futura advogada visualizou bem aquela rua, visualizou tudo. Logo depois da Praça das Flores, na Rua Outono, atravessando de um lado para o outro. E se interrogou: ela ia ou vinha saindo do escritório do Dr. Auto?
Não quis comentar sobre o que estava imaginando com a mocinha para não confundi-la mais ainda. Mas ora, se ela estava na Rua Outono então bem que poderia ter estado no escritório do advogado. Tinha que saber agora se os policiais haviam informado a ela acerca da hora do ocorrido, um momento razoável para se estabelecer um horário. Perguntou e ouviu que o infortúnio tinha acontecido logo depois do meio dia.
E novamente, em silêncio, dialogando e interrogando a si mesma, Carmen achou que tinha chegado a importantes conclusões. Se já havia passado do meio era porque a mulher já havia saído do escritório, não havia dúvidas. Pelo horário que falou com ela ao telefone, logo cedinho, e a mesma disse que já estava saindo da igreja em direção ao centro, então no horário do acidente ela já havia saído de lá.
E se havia saído de lá, tudo aconteceu no momento que ia atravessando a rua. Mas por que ela iria atravessar a rua de modo tão displicente, sem o devido cuidado com o trânsito preocupante dali, sem prestar atenção nos veículos passando em alta velocidade? Será que havia saído do local completamente cega, raivosa demais, com preocupações a tal ponto de praticamente se jogar em meio ao trânsito caótico? Se ela havia saído realmente assim, completamente desesperada, o que teria ouvido de novo do Dr. Auto que a havia transtornado daquele jeito, vez que nada do que poderia ouvir seria mais novidade? E se nada disso aconteceu desse jeito, porém outro fato mais intrigante serviu como motivação para o sinistro acontecimento? Mas o que, meu Deus, o que?...”
Por mais que insinuasse respostas imediatas jamais conseguiria saber a verdade. Precisava ficar mais calma, pensar melhor, procurar uma linha de raciocínio mais apurada e inteligente para saber das reais circunstâncias em que se deu o fatídico episódio. Sabia muito bem quem poderia dar todas as respostas, mas somente se ele quisesse falar a verdade, dizer realmente tudo o que sabia. Contudo, não adiantava esperar nada de veracidade vindo do advogado, nenhuma confissão, nenhum relato consistentemente aceitável. É triste, mas a sina dos mentirosos é nunca ser acreditado pelos outros, ainda que jurando pela mãe de joelhos.
Mas tudo isso se pensaria melhor mais tarde, talvez no dia seguinte, após o sepultamento da amiga. Ademais, como fizera com relação a Dona Leontina, se sentia no dever cristão de ajudar, de estar ao lado da filha naquele momento indescritivelmente difícil. O filho, Paulo, preso, não sabia do ocorrido e era melhor que não soubesse ainda, pois seria muito doloroso querer se despedir da mãe e ser dificultado pela própria justiça que o mantinha prisioneiro sendo inocente. Outros familiares existiam, deveriam estar presentes na despedida, mas ajudaria pensando na filha, na mocinha que visivelmente estava incapacitada para qualquer outra coisa a não ser chorar e lamentar a perda.
O corpo foi velado pela noite inteira e parte da manhã seguinte. Antes do meio dia, o corpo foi sepultado na presença de muitos amigos, principalmente os da vizinhança, e uns poucos familiares. A mocinha não falava noutra coisa que não no irmão, chegava a gritar chamando-o pelo nome, e a cada instante era confortada por Carmen que, colocando a cabeça dela no seu peito, explicava tudo novamente sobre a ausência dele. E sempre prometia que não duraria muito para o seu retorno ao seio familiar e em plena liberdade.
Era sacrifício demais, penoso e trabalhoso demais. Por mais jovem e forte que fosse, Carmen já estava extenuada, extremamente cansada de tanto sofrimento e da tomada das providências cabíveis. Precisava descansar um pouco, mas quase não consegue sair da casa entristecida com a mocinha abraçando-a, agradecendo fervorosamente por tudo que ela havia feito. Segundo a mesma, sem a ajuda de Carmen nada seria conseguido e talvez o corpo de sua mãe ainda não fosse nem sepultado.
Contudo, assim que deu um passo fora da porta parece que as forças voltaram de vez e ali mesmo decidiu que ainda naquela tarde saberia toda a verdade sobre a morte de Dona Glorita. E tinha de ser através do execrável advogado.

                                                   continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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