NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 18
Rangel Alves da Costa*
Dr. Auto ficou totalmente desarticulado diante da indagação da mocinha. Tinha vontade de dizer um monte de asneiras, de derrubar tudo que estivesse ao redor e até de agir com violência contra ela. Porém, num ímpeto, se conteve apenas para dizer:
“Agora você ultrapassou dos limites. A liberdade que dou não significa que possa usá-la para me falar com questionamentos como esses que me joga na cara, como se eu fosse um deslavado mentiroso ou um profissional que vive compartilhando meios escusos na defesa dos clientes. Ademais, é forçoso dizer, mas você não tem o direito de se intrometer desse modo no meu trabalho. Por respeito só vou dizer que não há nada por trás da defesa daqueles dois e se cobrei das próprias mães pela continuidade da defesa já foi pensando na desistência do apoio do deputado. Mas desse momento em diante, para o bem de todos e para que não ocorra nenhum imprevisto, você está de licença. Concedo-lhe férias, com todos os direitos trabalhistas, até o início do ano. Não veja isso como punição alguma, mas apenas para evitar que fique mais estressada logo na reta final da conclusão do seu curso. Até quero acreditar que o seu nervosismo e destemperamento tenha sido por causa da ansiedade nesses momentos tão importantes de término de curso. É preciso se preparar, pois ainda terá de prestar o exame de qualificação para o exercício da advocacia”.
Carmen se resumiu a responder que estava bem, que fosse desse jeito mesmo. Dali a dois dias entraria em férias, mas não antes de resolver uns assuntos pendentes ali mesmo no escritório. Contudo, como se quisesse deixar bem claro que não esqueceria nada do conversado e discutido ali, antes de sair se voltou seriamente em sua direção e disse, com voz firme e determinação:
“Nesses dias mais livres vou ter tempo de acompanhar uns processos que tenho muito interesse em saber do resultado”. Ao ouvir tal insinuação, o causídico quase sai correndo e se põe diante dela para perguntar quais processos que tinha tanto interesse em fazer o acompanhamento. Mas mesmo que quisesse não daria tempo, pois ela bateu a porta e saiu sem olhar pra trás.
Assim que Carmen deixou o local, o advogado continuou em pé, estático por alguns instantes, pensando, confusamente preocupado, num monte de coisas. Em seguida se voltou para o birô e deu um muro com a maior força que tinha naquele momento. Mais um soco, mais outro e depois baixou a cabeça até a madeira, batendo agora com as duas mãos. Ergueu o rosto transtornado, foi até a parede e bem diante da tela com a pintura a óleo soltou um verdadeiro grito: “Seus filhas da puta, apodreçam aí dentro!”.
Descontou sua raiva na parede com um chute, mas logo a seguir lembrou-se de telefonar ao Deputado Serapião Procópio e tal lembrança fez com que ficasse um pouco mais calmo: “Deputado, atendendo sua solicitação, por um bom tempo ficaremos livres das ameaças da secretária Carmen. Acabei de conceder férias até o início do próximo ano e quando retornar será despedida. Darei um jeito para que tudo aconteça assim...”.
“Melhor assim, melhor assim, sábia decisão. Ficaremos um pouco mais tranqüilos agora e mandarei imediatamente suspender um servicinho que já estava sendo providenciado...”. Ao ouvir isso do parlamentar o telefone quase cai da mão do advogado.
“Mas o senhor está ficando louco deputado, que servicinho é esse que mandou suspender? Se trata apenas de uma mocinha com um belo futuro profissional, pois tem perspicácia e é decidida. Respeito muito o senhor, mas não admito que tenha pensado em ultrapassar os limites. Será que não basta o que já estamos fazendo com aqueles dois pobres inocentes e suas humildes mães?”.
E o deputado respondeu em tom gozador:
“Não, não basta não. Aliás, nobre advogado, nada basta se é a nossa honra que está em jogo. Mas eu vou lhe dizer uma coisa antes que esqueça. Não basta que você tenha afastado a mocinha aí do escritório, mas tem de ter a certeza que ela não teve acesso aos processos, que não teve conhecimento da sua sem-vergonhice, das suas reiteradas mentiras, da sua defesa nojenta. Se ela souber disso é o mesmo que nada, não fazendo nenhum efeito que tenha se livrado dela apenas daí do escritório. Então, Dr. Auto, tem certeza que ela não sabe realmente de nada, que mais tarde não possa abrir o bico e nos jogar na lama?”.
“Mas claro deputado, ou o senhor acha que eu ia deixar que ela saísse daqui com bala na agulha. De jeito nenhum, e digo mais que os processos não estão nem conversando entre si, de tão escondidos que estão. Quanto a isso não se preocupe. E não esqueça de providenciar logo a outra parcela do nosso acerto. Ligue para os homens e diga que a condenação definitiva deve sair amanhã. Como não haverá recurso, após o trânsito em julgado passarão a cumprir a pena definitivamente, em regime fechado e o mais fechado que puder, numa pocilga ou num criatório de ratos”.
Feito isso, agora já demonstrava um semblante muito mais animador. Saiu para almoçar e o fez tranquilamente, se fartando como se nada daquilo tivesse acontecido há instantes atrás. Não lembrava realmente de nada, a não ser imaginando o que faria se após a condenação aquelas duas mães aparecessem novamente no escritório com o dinheiro para dar continuidade à defesa. Imaginou isso por um minuto e no instante seguinte já sabia o que fazer. Simplesmente pegaria o dinheiro e continuaria fazendo a mesma coisa, ou seja, absolutamente nada.
Enquanto o outro comia de lamber os beiços, com tudo regado a um vinho de renomada safra, Carmen Lúcia não tinha vontade nem de beber um copo de água. Abriu a porta do seu apartamento e imediatamente se dirigiu até um antigo oratório presenteado por sua avó. Ali, de joelhos, entregou-se a preces e orações, invocando a proteção divina para os difíceis caminhos que sabia que iria percorrer dali em diante.
Após esse devotamento decidiu que no dia seguinte visitaria aquelas duas mães sofredoras. Padecentes e enganadas.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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