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quinta-feira, 22 de setembro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 38 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 38

                                         Rangel Alves da Costa*


Quando o agente prisional bateu à porta e avisou num grito que o tempo da visita havia acabado e o presidiário tinha de ser recolhido, Carmen abraçou-o carinhosamente e disse que Deus o confortaria naquele momento difícil e lá fora ela iria fazer o que fosse possível e impossível para reverter toda essa situação.
Saiu quase correndo, com os olhos lacrimejando novamente e sem olhar mais para trás. Sumiu pelos corredores enquanto o agente se aproximava para colocar novamente as algemas, ainda que dissesse para Jozué ouvir que não sabia por que tinha de algemar um preso já dentro de um presídio igual aquele.
Estendendo as mãos, o presidiário disse apenas que achava que era para a pessoa não esquecer sua condição de prisioneiro, de fraquejado perante os grilhões da justiça, de bandido e escravo do sistema prisional. Só podia ser isso, pois outro perigo não apresentava estando ali dentro. Já conhecia o agente e aproveitou aquele momento em que ainda continuavam na sala para fazer uma pergunta ao rapaz:
“Desculpe eu dizer uma coisa, mas sempre achei você diferente dos demais que trabalham aqui. Ao menos você olha pra gente, fala com a gente, talvez reconheça que existam seres humanos aqui além de vocês. E por isso mesmo quero ver se você me consegue uma coisa, mas não se preocupe que não é nada de droga, de facilitação, de arma ou ajuda para qualquer coisa, nada disso. É que minha mãe morreu ontem e foi enterrada hoje, segundo fiquei sabendo agora através daquela moça que era amiga dela. Ela também tá se formando pra doutora advogada. Sim, mas como eu ia dizendo, é que eu queria saber se você me conseguia uma bíblia, dessas pequenininhas mesmo, pois preciso ler alguma coisa bonita pra minha mãe. Não tô malucando não, é que ela era de pouca leitura e gostava muito quando eu sentava e pegava uma velha bíblia que tem lá em casa e ficava lendo pra ela. Ela ficava tão encantada que começava a chorar. Sertaneja como ela era, ficava maravilhada com aquela passagem dizendo tudo passa e tudo vem novamente, que tem um tempo pra tudo acontecer. De tanto lê ainda lembro como se estivesse diante dela...
“Você quer dizer Eclesiastes não é isso mesmo?”, perguntou o agente, para espanto de Jozué. E este prosseguiu:
“Isso mesmo. Coisa boa que gosta também da bíblia. É mesmo no Livro de Eclesiastes e dizia assim, lembro muito bem:
‘Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu.
Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou;
Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar;
Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar;
Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar;
Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora;
Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar;
Tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz.
Que proveito tem o trabalhador naquilo em que trabalha?
Tenho visto o trabalho que Deus deu aos filhos dos homens, para com ele os exercitar.
Tudo fez formoso em seu tempo; também pôs o mundo no coração do homem, sem que este possa descobrir a obra que Deus fez desde o princípio até ao fim.
Já tenho entendido que não há coisa melhor para eles do que alegrar-se e fazer bem na sua vida;
E também que todo o homem coma e beba, e goze do bem de todo o seu trabalho; isto é um dom de Deus.
Eu sei que tudo quanto Deus faz durará eternamente; nada se lhe deve acrescentar, e nada se lhe deve tirar; e isto faz Deus para que haja temor diante dele.
O que é, já foi; e o que há de ser, também já foi; e Deus pede conta do que passou.
Vi mais debaixo do sol que no lugar do juízo havia impiedade, e no lugar da justiça havia iniqüidade.
Eu disse no meu coração: Deus julgará o justo e o ímpio; porque há um tempo para todo o propósito e para toda a obra.
Disse eu no meu coração, quanto a condição dos filhos dos homens, que Deus os provaria, para que assim pudessem ver que são em si mesmos como os animais.
Porque o que sucede aos filhos dos homens, isso mesmo também sucede aos animais, e lhes sucede a mesma coisa; como morre um, assim morre o outro; e todos têm o mesmo fôlego, e a vantagem dos homens sobre os animais não é nenhuma, porque todos são vaidade.
Todos vão para um lugar; todos foram feitos do pó, e todos voltarão ao pó.
Quem sabe que o fôlego do homem vai para cima, e que o fôlego dos animais vai para baixo da terra?
Assim que tenho visto que não há coisa melhor do que alegrar-se o homem nas suas obras, porque essa é a sua porção; pois quem o fará voltar para ver o que será depois dele?’
De tanto ler essa passagem, meu amigo, acabei gravando tudo na mente. Minha mãe talvez nem entendesse bem qual o significado dessas palavras, do mesmo jeito eu que nunca tive muito estudo, apenas sabendo ler e escrever, mas pela boniteza do que é dito, como se fossem versos divinos encantando o coração da gente...”.
“Amanhã será o meu último dia aqui, pois fui transferido para outro lugar e tudo porque foram dizer ao diretor que eu falava com os presidiários, quando deveria estar chicotando, torturando, agindo impiedosamente, sendo mais um carrasco. Que seja assim. Qualquer dia vou começar a escrever um livro de memórias sobre todas essas aberrações que acontecem nesse inferno. Não vou inventar nada, pois presencio tudo e infelizmente não existe água benta nem sabão do céu que possa lavar minhas mãos de tanto mal que também cometi. Reconheço meus pecados e minha indignidade, mas juro que morro um pouquinho todas as vezes que presencio tanta agressão ao ser humano, tanta desumanidade, tanta ofensa à honra e à dignidade das pessoas. Mas deixe isso pra lá que já estou conversando demais. Eu passarei e outros virão. Que assim seja. Mas o que você tanto deseja ter, que é uma bíblia, não sei que coincidência foi essa, mas tenho uma aqui no bolso, que lia sempre às escondidas dos outros...”.
“Mas você vai me dar sua bíblia?”, indagou Jozué, com o espírito momentênea e contraditoriamente exalando alegria. E o rapaz colocou a mão no bolso e puxou o pequenino livro bíblico, pedindo que guardasse com muito cuidado e dizendo: “Mesmo aqui dentro, encontrarás a liberdade aí dentro!”.
Em seguida algemou-o e o reconduziu.

                                                    continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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