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sábado, 10 de setembro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 26 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 26

                                         Rangel Alves da Costa*


Correr perigo já era o problema sério demais em qualquer situação, pior ainda quando podia ficar na mira de uma verdadeira máfia, de uma rede de corrupção comandada por pessoas muito poderosas. Teria que se proteger mais, se assegurou Carmen. Por isso mesmo que passaria uns tempos em outro local, na casa de uma amiga, bem longe do conhecimento deles. E faria a mudança ainda naquele dia.
Já acordou na casa da amiga, mais calma, porém sem esquecer nada do acontecido. Desfez daquele telefone e do número, procurou não deixar rastro. E se o celular ainda fosse o mesmo certamente perceberia mais de vinte chamadas não atendidas. E todas feitas do telefone do Dr. Auto, tentando a todo custo dizer que o Deputado Serapião desejava urgentemente conversar com ela.
O problema certamente ainda seria maior se ainda naquele dia o magistrado tivesse entrado em contato com ele, ou vice-versa, e aquela visita e o conteúdo da conversa fossem revelados. Se isto tivesse acontecido, no mesmo instante o magistrado exigiria uma drástica satisfação da parte dele, afinal de contas ela havia estado ali a mando de sua pessoa e por isso mesmo ele, negligente e displicentemente, tinha falado tantas coisas que jamais deveriam sair além do pensamento. Ou somente entre os verdadeiramente interessados.
Mas não, ainda bem que durante o resto do dia ninguém entrou em contato com ninguém, deixando tudo para o dia seguinte, quando as sentenças fossem assinadas. E logo cedinho desse dia, já a postos no fórum, o juiz telefonou para o advogado, porém sem falar nada do ocorrido no dia anterior, apenas dizendo que não esquecesse dos amigos, e por fim afirmou que as sentenças já estavam disponíveis na internet, e que ele as lesse para sentir como se faz o mal feito bem feito. E ainda brincou dizendo havia produzido duas verdadeiras pérolas jurídicas.
No mesmo instante o causídico acessou a página, pesquisou os processos e depois imprimiu cópias das duas sentenças. Recostou-se confortavelmente na sua cadeira e leu o conteúdo de cada uma. A cada parágrafo da decisão sentia um remorso que não acabava mais, seu íntimo chegava a gritar com tanta mentira tornada verdade de forma tão meticulosa, inteligentemente disposta com o único fito de imputar a prática de crimes a verdadeiros inocentes.
Cada palavra, cada ponto, cada vírgula, tudo ali disposto coerentemente nas sentenças, e no bojo uma afluência interminável de acusações, de inverdades, de falsos testemunhos, de provas forjadas, de confissões inexistentes, de imundícies e asquerosidades. O quanto é capaz o homem, usando do brilhantismo de sua inteligência para produzir sentença tão esmerada e bonita, mas completamente permeada de injustiça, iniqüidades, mentiras, aleivosias.
Eis o outro lado da moeda, esse outro lado que nem de cobre nem latão, mas de sujidade e aberração. Tudo isso pensava o causídico, repentinamente espantado por naquele instante estar reconhecendo quantas pás de imoralidade, de falta de ética e corrupção, havia jogado ali para ver frutificar um fétido e terrível lamaçal.
Agora ali, diante de si, os frutos da maldade semeada com o adubo da covardia e regada com o suor dos inocentes. E ele havia aceitado fazer parte daquilo, havia ajudado a que esse momento chegasse e com ele praticamente a morte não só dos dois rapazes, mas certamente também de suas pobres mães. Só faltava indicar-lhes os portões daqueles poços profundos e fétidos descritos por Dante.
E lia e relia. Tinha de ser forte, afinal ali também estava o seu dedo, ou melhor, sua desonra e desonestidade.
“A denúncia foi recebida em... e com ela veio o inquérito policial de fls...”, “Réu devidamente citado com defesa inicial apresentada às fls...”, “Na Audiência de Instrução e Julgamento às fls..., foram ouvidas as vítimas, bem como as testemunhas de acusação e defesa, além da qualificação e interrogatório do acusado...”, “Em sede de alegações finais, pede o Ministério Público pela total procedência da peça acusatória devendo o réu... ser condenado pelo crime previsto no art...”, “Tratam os autos de Ação Penal Pública Incondicionada visando a apurar a responsabilidade criminal de... pelo cometimento do crime de...”, “Inicialmente, vale ressaltar que o processo teve regular tramitação, sem qualquer irregularidade ou nulidade vislumbrada, sendo assegurados, na forma da Lei, os princípios do contraditório e da ampla defesa, malgrado entendimento contrário alegado pela defesa do acusado...”, “Compulsando os autos verifico que o Órgão Ministerial cumpriu os requisitos previstos na legislação processual penal, quando da elaboração da denúncia...”, “Assim, os fatos criminosos foram expostos de forma detalhada, demonstrando a essência da tipificação do delito, bem como todas as circunstâncias, além da qualificação do acusado e a classificação do crime...”, “Ultrapassados os aspectos preliminares, procedo à análise do mérito da questão...”, “Adentrando-se no mérito, não tenho dúvidas quanto à ocorrência da materialidade, estando plenamente provada nos autos...”, “Acerca da autoria delitiva e responsabilidade penal do réu..., não há dúvida que restou provado a participação do denunciado nas condutas narradas pelo parquet...”, “Com efeito, o direito de punir do Estado visa, dentre outros fins, intimidar as pessoas que transgridem as leis, objetivando manter a harmonia e a ordem no meio social, assegurando a paz e a tranqüilidade na sociedade, configurando o interesse público que fundamenta a ação penal, a qual deve ser exercida dentro dos parâmetros constitucionais do devido processo legal...”, “Ante o exposto, por tudo o que mais consta, julgo PROCEDENTE, a pretensão punitiva estatal contida na denúncia, para CONDENAR o denunciado... pelo crime previsto no art...”, “Analisando as circunstâncias judiciais, bem como as condições pessoais do acusado, tenho presente que o mesmo agiu com culpabilidade intensa e reprovável, sendo sua conduta merecedora de elevada censura. É possuidor de maus antecedentes e propenso a práticas delitivas...”, “Em vista de tais ponderações, notadamente pelas circunstâncias em que o crime foi praticado, fixo a pena definitiva em... sendo que o réu deverá iniciar o cumprimento da pena privativa de liberdade em regime fechado...”, “E nego ao mesmo o direito de recorrer em liberdade, em razão da necessidade de se garantir a ordem pública, já que a liberdade do representado em vista de sua periculosidade continua a implicar em verdadeira ameaça à sociedade...”, “Transitada em julgado, lance-se o nome do réu no Rol dos Culpados, além das seguintes providências...”, “Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Cumpra-se.”.
Ali estavam as sentenças, mas também verdadeiros atestados de morte. E logo mais faria novamente a leitura de cada uma perante as duas mães, de Jozué e de Paulo, pois marcado que naquela manhã o destino deles estaria decidido. E como estava. E talvez elas chegassem ali com as esperanças tão próprias das mães aflitas.

                                                  continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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