NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 27
Rangel Alves da Costa*
Tanto Dona Leontina como Dona Glorita acordaram nesse dia ainda mais cedo do que o costumeiro, quando levantavam assim que surgissem os primeiros clarões no horizonte. Estavam aflitas, apreensivas demais, com os corações em redemoinho e os espíritos totalmente entregues a outras instâncias de fé.
Lembravam muito bem do que Carmen havia dito, da preparação que ela havia feito para enfrentarem a realidade com as sentenças que logo iriam tomar conhecimento. E por isso mesmo ficavam ainda mais pesarosas porque a amiga deixou induvidosa a certeza da condenação, a máxima pena que seria aplicada e o destino deles dali em diante. Contudo , a fé de mãe, a esperança de mãe, a sempre confiança de mãe continuavam firmes.
Ora, meu Deus, que instantes crueis, que difíceis momentos em saber da realidade e ainda assim ter esperança que essa realidade se converta no impossível. E guardavam essa confiança dentro de si porque imaginavam que o bem, a justiça e a verdade se sobreporiam sempre ao mal, à injustiça e à mentira. Doce ilusão de mãe.
Mas não conseguiam entender, ao menos naqueles momentos de aflição, que tais aspectos são premissas de fé, de crença e de religiosidade, mas que no mundo ditado pelos homens, principalmente por aqueles que vivem segundo outras lições que não as divinas, nada disso tem qualquer valor, senão a dureza do ato e a brutalidade na queda. Perante grande parte dos homens, o que Deus ensinou só tem valor quando estão em estado de clemência e verdadeiramente tudo é esquecido quando estão vivendo na bonança e no poder.
De qualquer sorte, nem uma nem a outra quis colocar nada na boca depois de fazer as orações da manhã. A boca devia estar virgem, limpa, cheia apenas dos louvores e dos pedidos tantas vezes feitos e repetidos. Na boca cheia de fé, talvez quando perguntassem ao advogado sobre o resultado do julgamento ele poderia dizer que aconteceu um verdadeiro milagre e que os meninos haviam sido absolvidos. Que inocência, meu Deus, nessas duas mães tão calejadas na vida e no sofrimento.
Nos seus locais diferentes de moradia, cada uma se arrumou como pôde para, talvez, o dia mais importante de suas vidas. Há meses e meses que não pensavam noutra coisa, não imaginavam senão chegar o momento de ouvir o advogado dizer que enfim havia conseguido a tão esperada absolvição. Tanto Jozué como Paulo iriam retomar a liberdade e prosseguir nos esforços da vida.
Dona Leontina fechou a porta, se benzeu e saiu em direção á capelinha nas proximidades. Depois de mais orações, preces e pedidos é que iria tomar o transporte até o centro da cidade, rumo ao escritório. O mesmo fez Dona Glorita, mas quando ia colocando os pés pra fora da calçada ouviu sua filha dizendo que esperasse um pouco que iria se arrumar para acompanhá-la. Já havia falado com o gerente e naquele dia não iria trabalhar, pois temia que a mãe fosse sozinha receber tão importante resultado.
Hipertensa como era, com tantos outros problemas de saúde, seria perigoso demais passar por uma emoção muito forte sem alguém ao lado que pudesse devidamente socorrê-la. Retornou e esperou mais cerca de dez minutos, porém gritando de segundo a segundo que ela se apressasse porque ainda tinham que passar na igreja. Se não fosse esse atraso as duas mães chegariam praticamente juntas ao escritório, pois ainda estavam entrando no ônibus quando Dona Leontina ultrapassou a porta do escritório.
Ao entrar logo se deparou com a nova secretária. Já sabia que não encontraria Carmen ali. Apresentou-se e perguntou se Dr. Auto estava presente, pois o mesmo havia marcado com ela naquela manhã para falar sobre uma decisão muito importante. A mocinha disse que sim, que ele realmente a estava aguardando, mas que sentasse e esperasse um instante que já iria anunciar sua chegada.
Ao ouvir a informação da moça o advogado mudou de feição completamente, gelou, empalideceu, silenciou por um instante e depois disse que dali a cinco minutos a mandasse entrar. Não havia chegado nem às dez horas da manhã, mas levantou e preparou uma dose de uísque seco e bebeu de uma só vez, sem pestanejar. Depois sentou novamente, separou a sentença com relação a Jozué e ele mesmo foi até a porta convidá-la a entrar.
Abriu a porta com um sorriso jamais visto antes. Também como jamais fizera, abriu os braços para um braço assim que a mulher se aproximou. “Entre, por favor entre Dona Leontina que hoje temos realmente muito que conversar. Pelo jeito Dona Glorita ainda não veio, não foi mesmo? Mas entre, sente aí que já vou falar de algo muito importante.
Sem que ela visse, pois sentada olhando para a imagem de Cristo na Cruz na parede, ele caminhou rapidamente até o armário e tomou outra dose. Passou o lenço no rosto e nos cantos da boca e foi sentar na sua confortável poltrona. Com o mesmo sorriso, segurou a sentença na mão e começou a falar:
“Pois bem, Dona Leontina, depois desse tempo todo, dessa angústia toda, enfim saiu a sentença do seu filho. E o que tenho a dizer é que o juiz não considerou nada do que provamos, não viu que seu filho é realmente um inocente, e acatou o que o promotor já havia pedindo desde o início, que era a condenação de Jozué. Ontem mesmo fui até o fórum e procurei o juiz para, numa conversa de amigos, mostrar que se ele condenasse o seu filho estaria cometendo uma injustiça imperdoável, pois nada mais claro nesse momento do que a inocência dele e que tudo havia sido uma artimanha, uma arrumação da polícia para prejudicá-lo...”.
E o advogado mentia descaradamente. E continuou com essa mesma lástima da inverdade:
“Argumentei o que pude, pedi até pelo amor de Deus que desse uma chance a uma pessoa tão jovem, tão honesta e trabalhadora. Ele até que me deu esperança, pois disse que iria pensar, mas infelizmente, pelo que eu soube hoje, pois a sentença saiu hoje cedinho, nada do que pedi fui atendido, pois o seu filho foi condenado. E o pior que não foi apenas condenado, mas condenado a pena máxima, sentenciado com todos os rigores da lei, conforme vou ler daqui a pouco na sentença. E se não for dado entrado logo com recurso ele vai ser transferido para a penitenciária mais rigorosa que houver e de lá só sairá Deus sabe quando...”.
E bastou ouvir estas últimas palavras para Dona Leontina levar a mão ao peito, gritar pelo nome do filho e cair da cadeira. Morta.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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