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sexta-feira, 23 de setembro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 39 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 39

                                         Rangel Alves da Costa*


Conduzindo o seu veículo em direção ao centro, Carmen Lúcia dirigia até perigosamente, pois com o pensamento totalmente voltado para o encontro com Jozué. De uma parte muito difícil já tinha se desincumbido, que foi noticiar a morte de sua mãe. E que Deus o ajudasse a suportar mais esse sofrimento. Contudo, outra parte parecia estar começando agora. Talvez muito mais que isso.
Já que havia se comprometido a não abandoná-lo naqueles momentos difíceis, a providenciar um novo advogado para realmente defendê-lo, agora só restava cumprir essa espinhosa missão. Dinheiro não haveria de ser problema diante de outros problemas maiores e o principal deles era, através do advogado, fazer com que o direito reconhecesse o direito, o certo e o errado, e se encaminhasse no caminho da justiça, libertando o acusado verdadeiramente inocente.
Haveria de conseguir manter as forças para seguir em frente, para lutar pelo direito à liberdade daquele pobre rapaz. Entretanto, sabia que esse comprometimento lhe tiraria o sossego e certamente traria a inimizade e o rancor dos poderosos envolvidos naquela aberração toda, começando pelo ex-patrão advogado e pelo deputado amigo e da mesma máfia escabrosa dele.
Tudo isso pensando e quando se deu por conta, ao invés do centro da cidade já estava entrando pelas ruas que levavam às distâncias do Cafundó do Judas, comunidade onde residia a falecida Leontina. Percebeu prontamente o equívoco, mas decidiu prosseguir em frente. Um dia tinha ouvido de sua avó que as coisas nunca acontecem ao acaso, que tudo tem sua razão de ser, até o inesperado.
E se o acaso a havia colocado naquela direção, então que prosseguisse. Contudo, esse acaso passou a repentinamente ser justificado quando lembrou que precisava realmente ir até aquela localidade conversar com as pessoas sobre o ocorrido com a mulher e tentar encontrar alguém para ficar tomando conta da casa e dos objetos que continuavam lá dentro. Não havia nenhum luxo, pelo contrário, ela mesma já havia constatado, mas tudo sentimentalmente tão rico que não se poderia dizer o valor.
Estava ainda com a bolsa da falecida dentro do carro. Na desgastada peça estavam os documentos, um terço, o retrato do filho, as chaves de casa e algum dinheiro para transporte, só isso. Dinheiro que não pôde usar no retorno ao lar. Parou o veículo defronte ao casebre, desceu com as chaves à mão, mas não pensou em abrir a porta naquele instante. Precisava primeiro conversar com os vizinhos e com esse objetivo foi reunindo cada vez mais pessoas ao seu redor.
E que tão querida era a mulher. Todos que estavam por ali ouviram entristecidos os contínuos relatos e não foram poucos os rostos que se abaixaram em tristeza, os olhos que derramaram lágrimas, as mãos que procuraram bocas sufocando gritos. Espantos, pessoas sem querer acreditar no que ouviam, desmaios, água com açúcar pra uma e pra outra. Os dedos faziam o sinal da cruz, as mãos se uniam em orações, alguém prontamente escreveu com carvão a palavra saudade na velha porta.
Logicamente que Carmen contou sobre o fato como tendo ocorrido no escritório do advogado, porém sem falar sobre as circunstâncias. Não caberia naquele momento, e talvez os amigos jamais soubessem o que realmente havia acontecido com ela. Mas era melhor assim, de modo a não misturar a dor e o sofrimento pela perda com a raiva e o ódio. Ficaria apenas o lamento pela morte, pelo desaparecimento de forma tão inusitada da amiga, mas não a vontade de vingança pelo que fizeram com ela.
Depois de muitas explicações, vez que pessoas acorreram seguidamente, Carmen pediu desculpas por não querer mais recontar aquela história. Disse que precisava entrar na casa por alguns instantes e ali, em meio às coisas que guarneciam aquele pobre lar, pensar no melhor a fazer dali em diante, de modo que tudo fosse preservado até o retorno de Jozué. Quando falou no nome do rapaz as pessoas prontamente ficaram querendo saber notícias e perguntar quando ele seria solto. Procurou apenas dizer que brevemente e todos se deram por contentes. Ainda bem, pensou ela.
Abriu a porta e num instante já tinha percorrido tudo. Cada coisa no seu devido lugar, cada objeto parecendo ter a mesma feição da dona: desgastado pelo tempo, porém firme, servindo a contento para sua destinação. De repente o braço tocou num pequeno jarro e este caiu se transformando em pedacinhos. Então Carmen viu ali mais uma vez a feição da mulher. Num instante ainda firme, e agora nada.
Flores de plástico, filtro de água, um pote, uma moringa, pratos e canecas de alumínio, panos de pratos bordados com as próprias mãos, pequenos potes plásticos para o café, o açúcar, o sal a farinha, uma imagem de santo, várias imagens de santos, pedaços de vela numa cestinha por cima da mesa, um balde remendado, uma chaleira remendada, uma cozinha remendada. A vida, a pobreza, parecia tudo remendado, mas que riqueza, Carmen insistia em dizer a si mesma.
Abriu a geladeira com esforço, pois teve que tirar a amarração e encontrou lá dentro dois ovos, um vaso de água, um pedaço de mortadela e uma goiabada. Era tudo que havia ali. Saiu da cozinha e voltou à porta da frente. De lá olhou todo aquele palácio e não conseguiu mais avistar o seu fim, pois tudo era imenso e grandioso demais. Não sabia como, mas apenas uma chave fechava o paraíso.
Do lado de fora foi até uma casa vizinha e perguntou se alguém tinha interesse em receber algum dinheiro mensalmente para zelar pela casa e todos os objetos que estavam lá dentro. Dona Senhora quase desmaia de alegria e contentamento porque iria receber um dinheirinho extra. Verdade é que se ajoelhou chorosa quando recebeu as chaves da mão de Carmen.
Com mais essa situação resolvida, seguiu em direção ao centro da cidade, contudo ainda pensando num monte de coisas. E numa dessas vagas do pensamento ainda lembrou-se de Glorita e passou a temer pela sua situação naquele momento, pois já tendo ido até o escritório e ouvido a confirmação do pior, da máxima expressão de injustiça, deveria estar sofrendo ainda mais e agora sem saber o que fazer dali em diante, vez que certamente também nem queria olhar nunca mais na cara daquele maldito safado do Dr. Auto Valente.
O que Carmen não sabia é que muito mais coisas haviam acontecido. E coisas terríveis, acontecimentos infinitamente piores.

                                                  continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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