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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 25 de julho de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 56

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 56

Rangel Alves da Costa*


Mesmo com o padre tendo advertido sobre o perigo de continuar dormindo sozinho ali, Lucas se sentia com coragem suficiente para dizer que não temia nada que viesse através da covardia humana, e por isso mesmo não via necessidade alguma de dormir em outro lugar ou contratar alguém para fazer vigilância.
Em primeiro lugar porque realmente não sentia medo nenhum; em segundo lugar porque não tinha como pagar uma pessoa para fazer guarda; e por último porque temia que sem sua presença fosse pior, destruíssem de vez a casa, o barracão e o resto das coisas que tinha. Ademais, ali era sua casa e o seu lugar e não daria a ninguém o prazer de saber que estava temendo alguma coisa.
Quase não dormiu a noite inteira, sempre com os olhos no sono e os ouvidos em qualquer barulho que ouvisse. Foi acordado por alguém batendo na porta. Levantou, olhou no relógio e viu que já deveria ter acordado há muito tempo. Justificou-se pela noite mal dormida. Foi atender o chamado e quando abriu a porta encontrou Faísca, o rapazinho que estava envolvido com drogas. Este estava com a cara boa, com a feição alegre e parecendo disposto.
Lucas sentiu-se contente por vê-lo nesse estado de espírito. Pediu que sentasse num banquinho na varanda enquanto iria preparar um cafezinho e não demorou muito. Contudo, achou estranho que ao retornar da cozinha Faísca estava dentro da sala, olhando para a estante de livros. Entregou-lhe uma xícara de café e começou a conversar mais demoradamente com o menino:
- Gosta de ler? Aí tem bons livros, desde livros infantis a romances, se houver interesse por algum é só dizer. Mas me fale sobre você. Como tem andado, tem conseguido fugir daquele problema ou continua insistindo com essa bala no coração chamada crack? Você ainda é um menino e tem uma vida inteira pela frente para ser bem aproveitada. Se começar a destruí-la agora nem vai ter mais ter para se arrepender. Nem vou falar mais porque já expliquei isso tudo a você. Mas me diga, o que te traz aqui a uma hora dessa?
E sempre em pé, Faísca começou a falar:
- Só ia passando por perto e resolvi vim até aqui. Desculpe se acordei você. Uma hora dessa pensei até tivesse saído, e então bati na porta que era só pra saber, mas nada não...
- E sobre você, o que é que tem a dizer sobre você? – Perguntou Lucas.
- Eu nem quero saber mais daquele povo. Quando vejo eles de longe procuro seguir por outro lugar. E nem nunca mais usei droga não, se é isso que o senhor quer saber. Mas agora eu já tô indo, que minha mãe pediu pra tirar uns matos do quintal lá de casa. Até mais ver seu Lucas... – E foi saindo rapidamente.
Lucas até que gostaria de conversar um pouco mais com Faísca, mas diante de suas explicações se deu por contente e ficou na varanda olhando enquanto ele se distanciava na estrada. Somente umas duas horas depois, quando estava remexendo em suas coisas, percebeu que o seu relógio e um pequeno rádio de pilha haviam sumido de cima da estante. Mas será que foi Faísca? Não poderia ter sido outra pessoa, constatou com tristeza. Havia furtado aqueles objetos para vender por uma ninharia e comprar a maldita da droga. Esse maldito do crack atentando de novo o menino.
Situação triste e difícil a desse menino, e de tantos outros, reconhecia. Réu perante a sociedade e vítima de si mesmo, de sua fraqueza e do infortúnio de ter aceito experimentar a primeira vez. Bala engorda, doce engorda, comida engorda, água demais incha, mas o crack mata, menino Faísca. E o pior que vai matando aos poucos, e antes de levar você por completo ainda faz com que você espalhe o terror, roube, furte, destrua os bens de família para que alimente a própria morte. Quase tudo engorda e incha, menino Faísca, mas a droga destrói e o crack mata, menino Faísca!
Já depois das três horas chegou a meninada sorridente e barulhenta, prontas para fazer uma faxina geral no barracão e arredores, vez que haviam programado muitas atividades para o dia seguinte. Segundo Paulinho e Guiomar, logo cedinho estariam ali com suas mães para acenderem um fogo nos fundos do barracão e aprontar uma feijoada, dessa bem grande, feita em caldeirão e tudo. A turma já havia conseguido todos os ingredientes pedindo a um e a outro. Quando soube, o Padre Josefo tratou de providenciar três quilos de carne seca e dois de lingüiça. E avisou que ia se arriscar a comer mais de um prato.
Lucas ficava sem saber nem o que fazer nem o que dizer diante daquela meninada alegre, festiva e sadia. Ainda bem que as coisas eram assim, pois suportar aquelas últimas ocorrências só mesmo a alegria da meninada. Todos ali reunidos, limpando uma coisa e outra, remexendo isso e revirando aquilo, de repente foram chegando pessoas para ajudar. Pessoas pobres, gente simples ali mesmo da comunidade e arredores, mas o inacreditável é que estas pessoas traziam consigo, além da disposição de querer ajudar.
Cada um trazia um pouco de feijão, ou um pedaço de carne salgada, um pé de porco ou uma costela, ou ainda uma lingüiça ou um quilo de farinha. Teve um que levou mais de quilo e meio de toucinho salgado. Diante disso tudo Lucas pensou que estava ficando louco. Não era possível aquilo, de jeito nenhum. Essas pessoas é que precisam e não a gente, ficava imaginando. Mas quando iria agradecer e dizer que sentiam muito mas não iriam aceitar, vinha logo uma resposta: "É de bom coração, aceite que é para os meninos comerem a feijoadinha deles aqui amanhã".
Teve uma hora que Lucas se virou para os meninos e perguntou: "Vocês poderiam me dizer quem espalhou mundo afora que vocês inventaram de cozinhar uma feijoada aqui amanhã?". E todos apontavam em direção a todos. E foi então que Lucas acrescentou: "Então, amanhã logo cedinho vocês voltem até a casa dessas pessoas e convidem para comerem a feijoada. Ou convidam ou não tem feijoada. Estamos certos?".


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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