SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 27 de julho de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 58

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 58

Rangel Alves da Costa*


Uns três ou quatro indivíduos saíram de repente de uma parte de mataria por trás do barracão, bem perto de onde as mulheres cantavam e tagarelavam preparando a feijoada, cozinhando o arroz e mais uma panelada de carne de bode, e foram com paus nas mãos bem em cima dos caldeirões e das panelas, dando porradas que só se via feijão escorrer e pé de porco e linguiça voando pelos ares.
As cozinheiras que estavam ali nem se fala. Tomaram um susto tão grande que duas delas desmaiaram na hora, mais duas desandaram mata adentro sem direção e todas as outras se puseram a gritar e a chorar. Quando as pessoas correram para acudir, só avistaram os indivíduos com máscaras pelo rosto sumindo pelas redondezas.
Algumas das pessoas que acorreram até ali, ao se depararem com a cena, com as mulheres aflitas, a comida fervente pelo chão e panelas quase todas emborcadas, colocaram as mãos na cabeça e parecia que haviam perdido uma pessoa muito querida, um ente familiar. "E agora, meu Deus, o que fazer sem minha feijoada e sem minha carne de bode?"; "Valei-me, arriscado eu ter perdido o menino só por causa do pé de porco que num tem mais"; "Misera das misera, Cuma é que vou dizer as tripa por dentro qui já tava tudo de galfo e faca?". Era o que se ouvia num lamentar infinito.
Outras pessoas disputavam pelo chão a comida que estava espalhada. "Num precisa nem de farinha, vai com areia mermo". Felizmente algumas panelas que foram atingidas não chegaram a derramar por completo, restando ainda pelos fundos um resto disso ou daquilo. Foi quando Padre Josefo bateu palmas e chamou a atenção:
- Vocês não são e nunca foram bichos. Levantem já do chão e deixem essa comida aí. Lembrem que têm pessoas que precisam ser ajudadas, pois ainda estão desacordadas do susto que passaram, coitadas. Cheguem, levem as duas para um lugar mais fresco dentro do barracão ou mesmo embaixo da umburana. Tenham cuidado pois estão muito fragilizadas. Vocês três venham – E chamou três mulheres que há pouco estavam catando resto de comida pelo chão -, peguem umas vassouras e uma pá e limpem isso aqui urgentemente. Vocês duas venham aqui – E chamou mais duas -, peguem esses caldeirões e essas panelas que ainda têm comida dentro e levem para a casa de Lucas. Tomem conta da cozinha e terminem de preparar o que restou. Só tem uma coisa: a comida que ainda resta vai ser servida somente aos meninos que estão aqui, às crianças que estão aqui desde cedo e precisam se alimentar. Nós que somos adultos temos que dar um jeito... – Foi interrompido por uma senhora que parecia estar vestida para uma festa:
- Mas a gente tá com fome seu pade...
- Está bem, está bem. Se estão com fome de verdade então eu vou dar um jeito nisso agora. Sizenando e Lucrécio venham cá, por favor. Peguem o meu carro e vão até a cidade comprar agora mesmo o que eu vou mandar, escutem bem. Tragam quatro cestos de pães, bem cheios, vinte pacotes de ki-suco, três quilos de açúcar e cinco mortadelas. Tomem aqui o dinheiro – E puxou do bolso uma única nota graúda – e tomem cuidado com o troco. Ah!, já ia esquecendo comprem também dois pacotes de copos plásticos – E olhando pra Lucas, perguntou – Está precisando de alguma coisa Lucas?
- Sim – E chamou Sizenando e falou ao ouvido.
Assim que o padre mandou comprar a mortadela com pão, de repente, coisa de dois minutos, algumas pessoas saíram dali com a cara emburrada, como quem não tinham gostado do que tinham ouvido. "Euzinha comer pão com mortadela, nem morta"; "Só me faltava ser pobre agora pra me submeter a comer essa nojeira"; "Ia fazer um favor deixando os meus bifes e assados para comer dessa feijoada, mas comer essa pobreza aí já é demais". E saíram cochichando uma com a outra. Quase esbarram em Ester que ia chegando.
Quando o padre avistou Ester chamou-a pra perto e disse baixinho: "Me perdoe, doce menina, mas se ainda fosse naqueles tempos eu ia pedir um favorzinho a você. Era coisa besta, coisa pouca, somente pedir que não deixasse Lucas fazer besteira, pois sinto que esse jeito calmo que ele demonstra estar não passa de um disfarce, pois o mesmo está em tempo de explodir, já não agüenta mais ver tantos absurdos acontecendo perante uma só pessoa. Pois saiba, minha menina, que tudo isso que fizeram e fazem é unicamente para atingir o Lucas, para ver se fraqueja e se corrompe de corpo e alma perante o inimigo. Mas Deus é mais e o protegerá. Mas não custa nada pedir, como amiga, que ele se acalme que tudo será resolvido. Está bem?".
Lucas ia chegando no mesmo instante e perguntou:
- O que é que vocês tanto cochicham?
E o sacerdote se adiantou:
- Só diremos quando você contar o que estava dizendo no ouvido do Sizenando.
- Ah!, sim. Mandei que ele trouxesse umas flores.



continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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