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quinta-feira, 8 de julho de 2010

A BÍBLIA DO PAPA (Crônica)

A BÍBLIA DO PAPA

Rangel Alves da Costa*


Num entardecer do inverno italiano, de intenso frio e neblina se espalhando pela cidade do Vaticano, o sumo pontífice recolheu-se mais cedo aos seus aposentos no Palácio Apostólico, no intuito de aquecer-se na lareira do quarto enquanto lia a bíblia. O livro maior da cristandade estava em cima de uma escrivaninha de madeira nobre muito antiga, toda ornada com motivos em ouro. Dourada também era a bíblia, ali mesmo da Igreja de São Pedro e usada como leitura e reflexão por gerações inteiras de papas. Como a própria fé, nunca envelhecia, diziam. Quantos dedos santos já haviam folheado aquelas páginas frágeis e de força inestimável!
Ao abrir o livro santo, aleatoriamente como sempre fazia, percebeu algo estranho, muito estranho, pois ali, onde deveria ser o livro do Eclesiastes, contendo palavras sobre a fragilidade da vida humana, meditações sobre vaidades, poderes e desilusões, o que o santo padre encontrou foram transcrições de notícias dando conta do aumento imensurável de novas religiões, da busca pelo povo de uma igreja renovada pela ação e a demonstração de que o conservadorismo da igreja é porta que fecha não somente templos, mas também o coração de muitos fiéis.
Mas não pode ser, foi o que pensou o papa, totalmente assustado diante daquele fato. Observou se folhas estavam soltas e vendo que não, para afastar aquela estranha constatação, abriu a bíblia no seu início e começou a folhear livros, capítulos, versículos, enfim, tudo que podia ler, e o que encontrou lhe assomou como espanto ainda maior.
No Gênesis, por exemplo, não estava escrito sobre a criação do mundo, as tradições da remota antiguidade nem a história dos grandes patriarcas do povo de Deus. Nele não se lia "No princípio criou Deus os céus e a terra. A terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo, mas o Espírito de Deus pairava sobre a face das águas. Disse Deus: haja luz. E houve luz...", mas sim que "O homem levanta ainda na escuridão da madrugada para fazer o seu dia. E mesmo sem alimento que lhe dê sustança, coloca a enxada no ombro e vai caminhando pela estrada em busca de qualquer serviço para ganhar o pão. Precisa ganhar dinheiro para pagar o batizado do filho, pois a igreja não reconhece a pobreza de ninguém quando o assunto é arrecadar dinheiro...".
Assustado e suando frio, o papa abriu em outra passagem da bíblia, bem quando se iniciava o livro de Josué, que é o sexto livro e trata da luta do povo de Deus, os israelitas, para se instalar na terra de Canaan. E não leu "Lembrai-vos da palavra que vos mandou Moisés, servo do Senhor, dizendo: O Senhor vosso Deus vos dá descanso, e vos dá esta terra. Vossas mulheres, vossos pequeninos e vosso gado fiquem na terra que Moisés vos deu desta banda do Jordão...", mas sim que "Por esse mundão afora, onde a pobreza é visível até nos calangos magros, aquele que tem a terra não pode nela trabalhar, produzir e colher, para depois descansar com sua família, não pelo sol que amedronta e a chuva se inimiga, mas pela falta de apoio dos políticos e do apelo da igreja e outras instituições para que os governantes ajudem o pobre a produzir".
Ofegantemente, com as mãos trêmulas e suando frio, o velho papa seguiu adiante no seu folhear e se deparou com o grande poema que é o livro de Jó, cuja temática é o questionamento sobre a aflição e o sofrimento humano. Mas não leu "Ficaram sentados no chão ao lado dele sete dias e sete noites, sem que nenhum lhe dirigisse a palavra, tão grande era a dor em que o viam mergulhado...", e sim que "As pessoas passam diante de famintos e enfermos prostrados ao chão, nas portas das igrejas, templos e instituições, e ninguém lhes dá atenção, ouve as suas necessidades, nem lhes estende a mão, nem mesmo o homem da igreja que passa apressadamente".
Quando Provérbios deveria dizer que "Meu filho, se pecadores te quiserem seduzir, não consintas", o trêmulo papa encontrou "Meu filho, não consintas que padres pecadores queiram te seduzir". No Salmo 3, ao invés de "Senhor, como são numerosos os meus perseguidores! É uma turba que se dirige contra mim...", leu "Meu Deus, como são numerosos os falsos pregadores da tua palavra. É uma verdadeira quadrilha de homens carregando bíblias que se dirige contra mim".
Quase sem poder respirar, com as mãos cada vez mais trêmulas, folheou avidamente até alcançar o livro do Apocalipse, que cuida das revelações sobre o fim dos tempos e a salvação daqueles que tiverem sido obedientes aos ensinamentos divinos. E quase sem conseguir enxergar, onde deveria constar "Conheço as tuas obras, tanto o teu labor como a tua perseverança, e que não podes suportar homens maus, e que puseste à prova os que a si mesmos se declaram apóstolos e não são, e os achaste mentirosos", estava escrito "Conheço o teu poder, esse fausto e luxo que é a igreja, e que por pretender conservar-se assim ao longo dos séculos, outra coisa não fez senão colocar a própria igreja no descaminho da religião e determinados pastores seus uns acusados de todos os tipos de atrocidades".
Não podia ser, era um absurdo, brincadeira de mau gosto, coisa de alguém que estava querendo confundir seus pensamentos, testar sua sanidade ou colocar em prova sua supremacia religiosa na terra. Ora, a palavra de Deus não podia estar confundida, desvirtuada daquele modo, pois a igreja se ergueu no alicerce daquelas palavras. Alguma coisa estava muito errada e teria que saber logo o que era. Se alguém mais visse aquilo seria o fim do mundo, do reinado inatacável da igreja.
Foi quando, totalmente desesperado, o papa ouviu uma voz vindo do alto que dizia: "Você prefere a bíblia ou a realidade? Por que se apegar tanto a palavras envelhecidas quando a viva realidade se constitui numa bíblia ainda mais original? Se olhasse mais para o que acontece ao redor e no mundo veria que a bíblia está sendo reescrita a cada dia. Palavras são somente palavras, pobre homem pecador que se acha divino. Vai com tua igreja para a realidade e somente assim apagarás parte dos muitos pecados que existem por baixo da mitra, do solidéu, da tiara, do hábito e das vestes menores dos homens sob seu mando".




Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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