SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 5 de julho de 2010

CÂNTICO DO AMOR (Crônica)

CÂNTICO DO AMOR

Rangel Alves da Costa*


Um dia, no seu cansaço e tristeza, na sua dor e desilusão, ele não fez poesia, não escreveu um só verso para alicerçar o seu amor solitário e cada vez maior. Enorme era a solidão e bem maior o amor que expressava em palavras simples para um querer demais.
Fazia tudo para que ela sentisse o quanto esperava ser correspondido naquela profunda afeição que alimentava desde o primeiro dia que viu sua bela imagem, sua formosa feição, detalhes de perfeição nos cabelos em desalinho, no sorriso espontâneo, no gesticular libertário e no caminhar sem formalidades.
Bela a mulher que amava desde então, belos eram os seus sentimentos, porém tristes, muito tristes, eram as respostas que tinha recebido no coração ávido para ser feliz. Todos os sonhos que tinha se transformaram em versos, transformava em poesia todos os pensamentos que surgiam, ia construindo na palavra escrita tudo aquilo seria dito um dia: te amo.
Todos os poemas que escrevia e a ela chegaram sempre ao entardecer, foram lidos e talvez amontoados como papéis sem serventia, ignorados como se despreza uma estrela no meio da noite enluarada. Quantos sóis estavam ali, brilhando sobre eles para sempre; quantas nuvens passeavam sobre suas cabeças nas tardes em meio a natureza; quantos pássaros voejavam ao redor e quantos pingos de chuvas molharam só para um ir enxugando o outro. Tudo isso estava ali nas poesias que ela nunca lia, e por não respeitar as palavras que gritavam ao seu lado não pôde ver quantas coisas foram escritas em nome do amor: felicidade, paz, querer, desejo, afeto, afeição, saudade...
E houve uma tarde que um verso apaixonado foi ao encontro dela e voltou apavorado, triste, sem saber o que fazer. Ela simplesmente rasgou o que estava escrito e jogou ao vento. E vai que a brisa se faz e os pedacinhos são juntados e voltam às mãos trêmulas do poeta desiludido. O que fazer, então, diante de um amor que não quer saber que é amada? O que fazer agora, se não há mais palavras, se não há mais gritos, se não há mais silêncio. Como silenciar diante disso tudo?
Um dia, sabendo que ela estava em casa, pegou a bíblia e seguiu naquela direção. Quem chegaria não seria o rapaz apaixonado, aquele que tudo faria para que ela ouvisse por um instante uma só palavra sua, mas sim um pregador dos evangelhos, uma pessoa que tinha o prazer de levar aos lares as verdades contidas na bíblia, os ensinamentos divinos, as lições que todos gostam de ouvir.
Ao chegar, recebido pelos seus pais e pedindo licença para ler somente uma passagem bíblica, logo a mãe gritou pela filha para que chegasse até a sala. Ao chegar, linda como sempre, quase sorri ao encontrá-lo ali de bíblia na mão e totalmente transtornado diante de sua presença. Olhava firmemente nos olhos dela e somente nesse instante percebeu que não estava sendo ignorado. Ela deu um leve sorriso e num instante leu em voz alta passagens do Cântico dos Cânticos, essa bela poesia bíblica que está mais para uma declaração de amor do que mesmo para a religião:
"- Ah! Beija-me com os beijos de tua boca! Porque os teus amores são mais deliciosos que o vinho, e suave é a fragrância de teus perfumes; o teu nome é como um perfume derramado: por isto amam-te as jovens. Arrasta-me após ti; corramos! (...) tuas faces são graciosas entre os brincos, e o teu pescoço entre os colares de pérolas. Faremos para ti brincos de ouro com glóbulos de prata. (...) Como és formosa, amiga minha! Como és bela! Teus olhos são como pombas. - Como é belo, meu amor! Como és encantador! Nosso leito é um leito verdejante, as vigas de nossa casa são de cedro, suas traves de cipreste; (...) Levanta-te, minha amiga, vem, formosa minha. Eis que o inverno passou, cessaram e desapareceram as chuvas. Apareceram as flores na nossa terra, voltou o tempo das canções. (...) - Tu és bela, minha querida, tu és formosa! Por detrás do teu véu os teus olhos são como pombas, teus cabelos são como um rebanho de cabras descendo impetuosas pela montanha de Galaad, teus dentes são como um rebanho de ovelhas tosquiadas que sobem do banho; (...) Teus lábios são como um fio de púrpura, e graciosa é tua boca. Tua face é como um pedaço de romã debaixo do teu véu; teu pescoço é semelhante à torre de Davi, construída para depósito de armas. .Aí estão pendentes mil escudos, todos os escudos dos valentes. Os teus dois seios são como dois filhotes gêmeos de uma gazela pastando entre os lírios. Antes que sopre a brisa do dia, e se estendam as sombras, irei ao monte da mirra, e à colina do incenso. És toda bela, ó minha amiga, e não há mancha em ti. Tu me fazes delirar, minha irmã, minha esposa, tu me fazes delirar com um só dos teus olhares, com um só colar do teu pescoço. Como são deliciosas as tuas carícias, minha irmã, minha esposa! Mais deliciosos que o vinho são teus amores, e o odor dos teus perfumes excede o de todos os aromas! Teus lábios, ó esposa, destilam o mel; há mel e leite sob a tua língua. O perfume de tuas vestes é como o perfume do Líbano..."
Quando ia continuar recitando versos de amor extraídos da bíblia como último gesto para ser ouvido por sua amada, eis que ela interrompe e diz: "Mais adiante diz assim, e é a parte que eu mais gosto: - Levanta-te, vento do norte, vem tu, vento do sul. Sopra no meu jardim para que se espalhem os meus perfumes. Entre meu amado no seu jardim, prove-lhe os frutos deliciosos. (...) pela manhã iremos às vinhas, para ver se a vinha lançou rebentos, se as suas flores se abrem, se as romãzeiras estão em flor. Ali te darei as minhas carícias..."
Os pais da bela menina ficaram encantados com a inteligência da filha e principalmente com sua religiosidade. Pensavam ser um encontro religioso que dera bons frutos, quando na verdade era outro tipo de amor que estava frutificando. Ele, coitado, não sabia o que fazer diante de tanta felicidade. Após um sincero sorriso dela, saiu de lá viajando em pensamentos: "pela manhã iremos às vinhas, para ver se as flores se abrem, e onde te darei as minhas carícias". Foi o que lembrou de ter ouvido.




Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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